quarta-feira, 4 de maio de 2016

10.

Victoria e Luciano passaram o resto do dia imprimindo e distribuindo o panfleto sobre a missa que seria dali uma semana. Alguns alunos ajudam na distribuição e Victoria explicava que a missa seria ecumênica e que estava procurando um Pastor para ajudar André e Antônio no dia. Com a carga de trabalho, os dois não perceberam que Paulo ficou afastado observando.

Antônio foi até a casa de Victoria para fazer uma visita a André. Há mais de dez anos eles não se viam e Antônio sentiu que precisava tirar algumas dúvidas com André, principalmente sobre Victoria e Luciano.

- Entra Antônio. Ela está no colégio agora. Nesse ponto ela é bem parecida com a mãe.
- Eu notei essa semelhança. Mas, André... Por que agora? Por que você voltou? Você sabe que isso provavelmente pode te matar. Aliás, eu sei que você abandonou o tratamento...
- Ora não comece com isso. Eu não poderia deixa-la sozinha enfrentando tudo isso.
- Ela não está sozinha...
- O Luciano não entende muitas coisas, ele tem muitas dúvidas, o que aliás é compreensível em se tratando do que ele é.
- Certo não quero discutir sobre isso com você.
- Então, o que queria falar comigo?
- Malak? A Tereza não havia conseguido prendê-lo no inferno? O que ele está fazendo aqui?
- Ele conseguiu escapar quando ela morreu. Victoria ficou sozinha, a tia dela morreu. Ele conseguiu.
- Como você sabe de tudo isso? Você nunca parou de vigia-la não foi? Tereza não havia pedido para você ficar longe?
- Eu não consegui, você sabe bem. Não pude. Ela...
- Ok. Agora precisamos encontrar uma forma de você contar a ela que... – Antônio falou interrompendo os pensamentos de André.
- Não.
- André você não pode esconder isso dela por muito tempo.
- No momento certo, Antônio. No momento certo.

Antônio precisou voltar à paróquia para resolver algumas coisas que ainda estavam faltando de sua volta, mas prometeu continuar a conversa. André aproveitou e tentou entrar em contato com alguns pastores que ele conhecia de longa data, mas não houve sucesso, aparentemente alguns se aposentaram e outros ele perdeu o contato.

Victoria sempre fora muito ciente de que dentre seus alunos não havia somente católicos, e por isso mesmo, exigia que, se não houvesse também um pastor, não haveria missa.
Isso era muito bonito da parte dela, mas de forma prática, era complicado. A rixa entre católicos e protestantes havia tomado proporções assustadoras nos últimos anos e André não estava certo se haveria algum pastor que aceitasse algo assim, mas ele não parou de procurar. Antônio também ficou de falar com alguns conhecidos. Eles mantiveram o contato enquanto faziam as ligações, e justamente por isso, André não parou de pensar que, já estava mais que na hora de contar a verdade para Victoria. Ele só não sabia como ela reagiria ou se sequer aceitaria tal verdade.

Com muito esforço, Victoria conseguiu conhecer um pastor com um vasto conhecimento sobre religião no geral. Pastor Moisés aceitou conversar com ela, Luciano e André assim que tivesse tempo. Passava pouco mais das três da tarde quando Victoria o recebeu em sua sala.

- Pastor, obrigada por ter vindo tão rápido.
- Não por isso filha. Mas confesso que é a primeira vez que alguém chega a mim com uma proposta dessas. Geralmente as pessoas não se preocupam muito com isso.
- Ah, mas aqui na escola eu me preocupo, apesar de saber que sempre haverá críticas, mas tento evitar o máximo possível. O colégio não é religioso, mas eu sempre achei importante. Os pais não reclamam disso, até gostam.
- Claro, claro. Mas, com quem devo falar para saber como proceder? – Moisés terminou de falar e Antônio entrou sem bater. Ele estava preocupado demais para sequer dar atenção à Moisés.
- Victoria, você precisa ver isso, agora.
- O... Que foi? – Victoria perguntou levantando rápido e correndo atrás de Antônio.

O que Victoria viu não a deixou feliz. Um pequeno fogo estava em cima de um de seus alunos. Victoria ficou tão nervosa que não notou que, perto do aluno estava Paulo conversando com ele. Os três chegaram perto dele para conversar.

Antônio e Moisés ficam conversando enquanto Victoria tentava entender o que estava acontecendo. Malak estava ficando cada vez mais ousado, o que é normal, mas ela não entendia o motivo de atacar alguém completamente aleatório como aquele aluno. E ela queria saber o motivo de tudo aquilo.

- Lembre-se do que falei, filha.
- Não é o Malak, mas alguém que “trabalha” para ele, digamos assim.
- Alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui? – Moisés perguntou sem entender muita coisa. – Quem é esse Malak?
- Vem, precisamos conversar. Victoria, vá lá conversar com o aluno.

Antônio levou Moisés de volta ao escritório de Victoria. Seria complicado explicar tudo que eles estavam enfrentando, mas talvez, uma visão de fora pudesse ajudar bastante. Victoria ficou para trás tentando fazer com que o aluno não assustasse mais ninguém com seu comportamento estranho. As labaredas vermelhas estavam fracas, então seria fácil.

- O que está acontecendo aqui? – Moisés estava nervoso.
- O que você entende de possessão demoníaca, Moisés?
- Que precisamos ter muita força de espírito para lidar com essas coisas. Você vai ou não me explicar o que aconteceu lá fora?
- Você já ouviu falar nos Cristadelfianos?
- Que eles atuam mais no circuito europeu. São pessoas especiais que lutam contra todo e qualquer mal. Espera, você quer dizer que ela...
- Sim.
- Mas... Como?
- A mãe dela foi uma famosa...
- Ela é a filha da Tereza?
- Você conhecia a Tereza?
- Só a fama dela. Ela lutava bravamente mas sucumbiu tem alguns anos. Todos nós ficamos tristes com sua morte. Ela era a única do país e o comportamento dessa moça...
- Então, depois da morte de Tereza, Victoria assumiu seu trabalho, mas tenta manter uma vida normal. Logo ela terá que escolher e não vai ser fácil. O grande inimigo de Tereza foi Malak, um demônio classe nove, Gidin. Desde a última batalha deles dois, Malak perdeu muito do seu poder, então a única coisa que pode fazer é mandar subordinados. O que você viu lá no pátio foi a manifestação de alguém a mando dele.
- Mas numa criança? Demônios não conseguem possuir crianças. São puras demais.
- Então você conhece a história. Venha, tenho que lhe explicar tudo que sei. Depois vou lhe apresentar a alguém que está mais a par de tudo que está acontecendo.

Na última hora Antônio explicou tudo que sabia a Moisés. Foi o tempo que Victoria levou para acalmar o aluno. Era um aluno do segundo ano. Depois ela o levou para a sua sala, onde Luciano sempre deixava alguns vidros com seus óleos. Ela separou um pouco e deu para o menino. 

- Filho vá para sua casa, tome um banho relaxante e depois passe esse óleo na sua testa com um pano úmido. Peça para sua mãe me ligar que explicarei o motivo de você ter ido cedo para casa.
- Ah professora, tudo bem, minha mãe não liga muito se eu estou ou não em casa. Mas obrigado de qualquer forma.

Victoria se deixou cair na poltrona. Sempre que sabia de situações assim com seus alunos, ela ficava abalada. Antônio e Moises estavam calados esperando que ela se manifestasse. Como isso não aconteceu, Antônio foi o primeiro a falar.

- Eu contei a ele. Ele precisava saber o que estava acontecendo. Na verdade, não era a minha intenção, mas depois do que aconteceu, e de como você se comportou, não houve outra alternativa. Me desculpe.
- Tudo bem, padre. É sempre bom ter ajuda. E pastor, me desculpe pelo ocorrido. Às vezes fica impossível saber onde tudo vai acontecer.
- Eu estou falando com uma verdadeira cristadelfiana. Não se preocupe, só esse fato já me fez aceitar a empreitada.
- Não será fácil, vou logo avisando.
- Estarei aqui para o que puder ajudar.
- Obrigada. Padre, o senhor pode avisar a Luciano sobre o que aconteceu? Chame-o aqui, sim?
- Certo. Vou aproveitar e começar a arrumar o pátio. Você quer vir, por favor, Moisés? Temos muito a conversar ainda.

Luciano entrou meia hora depois preocupado. Antônio contou o que aconteceu e ele liberou a turma mais cedo. Ao entrar no escritório de Victoria a encontrou de cabeça baixa descansando. Sem fazer muito barulho, ele preparou um café forte para ela. Ele se abaixou ao lado dela e sorriu.

Victoria tentou se controlar, ultimamente ela ficava estranha ao lado dele, e temia que isso atrapalhasse ambos os trabalhos. Ela sorriu e pegou a xícara. O gole no café forte a fez relaxar. Recostada em sua poltrona suspirou.

- Foi tão difícil assim? – Luciano perguntou se sentando.
- Não era Malak, mas sim alguém a mando dele. Ele me falou que Malak voltaria mais forte e que estava preparando uma surpresa para mim.
- E o aluno?
- Mandei para casa. Chegou no meu trabalho, Luciano. Ele está ficando mais ousado e eu não tenho mais como agir contra ele. – Victoria se levantou e ficou observando as crianças brincarem na quadra. – Agora ele está conseguindo atacar crianças. Crianças caramba.
- Vamos dar um jeito, você vai ver.
- O que Deus anda fazendo que não olha pelas crianças? – Victoria perguntou não como uma crítica, mas uma constatação. Luciano se levantou e a abraçou.
- Ele está tranquilo, pois sabe que ele tem você ao lado dele. – Luciano falou olhando nos olhos de Victoria. – Você não pode se deixar abater, Vic. É isso que Malak quer. Que você perca a fé. – Luciano falou tirando um cacho de cabelo do rosto dela.
- Ele está fazendo um bom serviço então... – Victoria falou baixo. Ela estava olhando para ele.
Eles estavam perto demais e nenhum dos dois queria se soltar. Mas foram obrigados quando Antônio voltava para falar com Victoria. Victoria e Luciano se afastam quase que instantaneamente, mas não a tempo de Antônio não ver.

- Moisés vai aceitar a tarefa? – Victoria perguntou tentando evitar comentários por parte do padre.
- Vai sim.
- Quem é Moisés? – Luciano perguntou depois de um tempo calado.
- Um pastor que conheci e que talvez possa nos ajudar, Lu. – Victoria falou sem olhar diretamente para ele.
- Bom eu vou contar as novas ao  André. Victoria você tem que conversar com ele.
- Sobre?
- É melhor ele contar a você.
- Você sabe de alguma coisa? – Victoria perguntou a Luciano que deu de ombros. – Tudo bem, diga que vou conversar assim que chegar em casa hoje.
- Eu... Tenho uma aula agora. Mais tarde nos falamos? – Luciano perguntou da porta.
- Claro. – Victoria respondeu sorrindo.

Victoria chegou em casa exausta. Não era costume ela ficar assim tão cansada. E com fome. Entrou e mal falou com André, foi logo para a cozinha preparar alguma coisa para comer. Não demorou muito André aparece na porta meio preocupado.

- No colégio?
- Sim, mas consegui resolver rápido. – Victoria falou mordendo um pedaço de pão.
- Ele está ficando ousado.
- Eu lhe disse isso.
- Escute, Victoria, preciso falar algo com você.
- Sim. – Ela parou de comer e olhou para ele.
- Escute, não... Não vai ser fácil ou melhor, não existe jeito fácil de falar isso.
- Então...
- Eu não fui inteiramente honesto com você. Não lhe contei toda a verdade.
- Que verdade? – Victoria falava entre uma mordida e outra. Ela notara que nunca havia tido uma fome tão forte.
- Você sabe porque fui expulso?
- Porque foi contra um monte de coisa do Vaticano e porque virou exorcista. – Victoria falava comendo o pedaço de pão.
- Não. Eu fui expulso... Porque... Eu me apaixonei. Foi uma paixão tão forte que não podia esconder, nem controlar. Consumiu meu coração feito fogo. Quando meus superiores descobriram, bem... – Ele falou olhando para ela. Victoria, que a princípio não deu muita importância, de alguma forma, sabia que no final teria a ver com ela. – Veja, tentamos esconder o máximo que pudermos, mas.... Ela ficou grávida e.... – André parou de falar quando Victoria se levantou. Ela estava calada, mas ele sabia que ela já havia entendido.
- Não quero mais saber. – Ela falou tentando sair da cozinha. Foi impedida por André.
- Eu não consigo mais esconder, Victoria, você precisa saber de toda a verdade.
- Não. A verdade é que meu pai foi embora, que ele abandonou minha mãe e que... E que...
- Não Vic. Eu nunca fui embora de verdade. Nós achamos melhor ficar afastados para continuar meu trabalho, mas eu nunca fui embora, eu sempre estava em contato com sua mãe. Quando você nasceu.... Foi nossa maior alegria.

Sem conseguir suportar mais qualquer coisa que André dissesse, Victoria o empurra correndo para o quarto. Foi no mesmo instante que chegam Antônio e Luciano.

- Mas.. Que diabos? Vic... Vic espera. – Luciano correu atrás de Victoria e Antônio ficou perto de André.
- Calma, ela vai aceitar. Não se preocupe. Mas você deveria ter esperado nós dois chegarmos. Ela precisaria da força dele e você sabe disso.
- Eu sei, mas já não conseguia mais guardar isso para mim. Ela não foi um erro como a igreja tentou passar. Eu demorei para aceitar isso, mas agora.... Ela é minha filha e eu não quero morrer sem que ela saiba da verdade.
Victoria se trancou no quarto, chorando, vendo fotos da mãe e dela quando criança. Parecia que toda a sua vida havia sido uma mentira. Luciano ficou sentado na porta do quarto até adormecer.

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