A noite estava calma. Estranho
em uma cidade como Manaus. Àquela hora, a cidade deveria estar viva, e não tudo
calmo daquela forma. Victória ficou parada em frente à porta observando o
movimento da rua. Do outro lado havia um condomínio. A maioria das pessoas
estava terminando o jantar. Lembrou-se de que não havia jantado. Acendeu um
cigarro. Era a forma que ela encontrava de esquecer o cansaço, a fome e o
estresse, mas sua tarefa ainda não havia terminado. Estava dando um tempo.
Naquele tipo de trabalho, dar um tempo era mais que necessário tanto para ela
quanto para a pessoa dentro da casa.
Então os barulhos recomeçaram.
Eram parecidos com latidos, bem, pelo menos quem passasse de carro pensaria que
eram latidos. Victória pensou que talvez um buldogue fizesse esse tipo de ruído,
ela não saberia dizer com certeza, pois nunca tivera cachorros, ou gatos, ou
sequer papagaios. Era sempre ela e a mãe. E, desde que a mãe morreu, no ano
passado, Victória ficara responsável pelos negócios da família. Não conhecera
seu pai. Segundo sua mãe, ele não aguentou tanto... Serviço.
Olhou para o cigarro, havia
acabado de acender. Suspirou, jogou no chão e pisou em cima. Com uma puxada de
ar mais forte, entrou. Ela precisaria de todas as forças possíveis para
conseguir ter sucesso.
No último quarto da casa havia
um senhor de aproximadamente 50 anos. Era ele quem estava fazendo os barulhos.
Bem, não necessariamente ele. Victória parou e sentou-se em uma cadeira. Era somente ela e o senhor. Esperou. Em algum momento tudo recomeçaria.
E em algum momento ou ela conseguiria sucesso ou ela perderia. E desde que
começara, Victoria tinha cem por cento de resultados favoráveis.
- Então quer
dizer que a putinha voltou? Sinto cheiro de cigarro. Que foi? Cansou? – O
senhor olhava diretamente para ela. Seus olhos estavam inexpressivos. Victória
continuou calada observando. – Eu sei que não tens um homem há muito tempo e
que desejas muito um na tua cama. Que moral tens de vir aqui? Ele é MEU! –
A voz do senhor havia mudado, era hora dela entrar em ação.
- Demônio tu
não és tão forte quanto o meu Deus. Ele é o poderoso. Ele é quem comanda e é
Ele quem vai salvar a alma desse senhor. Tu aqui não tens poder. O meu Deus é
mais forte.
- Teu Deus?
Eu vou te falar uma coisa desse teu Deus. Ele não tá nem ai pra vocês. Vocês
matam, vocês roubam, vocês mentem. Ele se cansou de vocês e deixou tudo para o
meu senhor. O meu senhor, avisou ao filho dele que isso aconteceria. Que
pessoas matariam e mentiriam em nome dele.
- Diz teu
nome demônio! – Victória começou a falar mais forte e alto com a mão na cabeça
do senhor e a mão no crucifixo.
- Se teu
Deus é tão forte assim, por que não tentas adivinhar? – A voz agora era grave.
Victória pensou que quem escutasse pensaria que estariam assistindo Poltergeist
ou O exorcista de tão semelhante que era.
- Diz teu
nome em nome de Deus! – Victória agora encostava a cruz na cabeça do senhor. O
Suor escorria pela sua têmpora, mas isso sempre acontecia.
- Não! Ele é
meu. – A voz agora era de dor.
- Demônio, o
meu Deus está ordenando, diz o teu nome! Diz o teu nome pelo Sangue de Jesus
crucificado. - O que aconteceu, Victória sabia bem. Um grito doloroso agudo
vindo do âmago do Senhor.
- Malak. O
meu nome é Malak. Demônio das almas perdidas. – O grito poderia ser escutado da
esquina.
- Sai Malak. Tu não tens mais poder sobre essa alma.
Essa alma é de Deus, essa alma é abençoada. Vai embora. – Victória segurava a
cabeça do senhor que depois de passar cinco minutos gritando, tombou em sua
frente.
Agora Victória lavou a cabeça do
senhor com água benta depois de virá-lo para ela. A respiração dele foi, aos
poucos, voltando ao normal. Ela terminou fazendo o sinal da cruz nos locais das
chagas de Cristo com uma mistura antiga de sua família feita de azeite,
alecrim, arruda e cânfora. Ela também jogou nas portas e janelas acabando com o
vidrinho.
Quando estava terminando a
purificação, Luciano chegou em seu carro preto. Era sempre assim. Eles recebiam
o chamado, Luciano deixava Victória no local e voltava tempos depois. Caso
ainda não estivesse terminado, ele ficaria no carro esperando.
Quando entrou, Luciano sentiu um
cheiro forte de cânfora, alecrim e enxofre. Sabia que Victória estaria
esgotada, o que provavelmente era o sinal de que os planos dele para aquela
noite estavam cancelados. Mas ele também sabia que ela estaria com fome, então
entrou com um sanduiche embrulhado dentro de sua bolsa estilo carteiro.
- Esse deu
trabalho. Você jogou seu óleo por toda a casa. – Ele falou levantando
cuidadosamente o senhor e colocando-o na cama sem esperar nenhuma resposta.
- Foi mais
cansativo do que eu pensei. – Ela falou sem fôlego. – Mas não o perdemos.
- Você nunca
perde ninguém. – Luciano olhou de canto de olho a reação de Victória.
- Vamos, nosso trabalho aqui terminou. – Falou baixo olhando
amorosamente o senhor que agora dormia tranquilo.
Victória e Luciano saíram do
quarto e foram encontrar o resto da família três casas adiante. Essa era a hora
que Victória menos gostava. Sabia lidar com demônio, não com pessoas.
- Então, ele
vai ficar dormindo por um tempo. Aqui tem esse óleo. Passe quando ele acordar e
assim que ele for dormir durante sete dias, nem um dia a mais, nem um dia a
menos. – Victória falou para a jovem que aparentava ter, no máximo, vinte anos.
- Ele... Ele
vai ficar bem mesmo?
- Não se
preocupe. Não voltará a acontecer novamente. Mas lembrem-se todos, sempre
conversem com Deus e nunca deixem de ir à igreja de vocês, tudo bem? Ele
precisará muito disso.
- Não, não,
pode deixar.
- Ah, e mais
uma coisa, assim que amanhecer, compre peixe.
- Peixe?
- Sim, carne
branca, faça um arroz, cozinhe o peixe no azeite, sal, limão e bastante cebola
e tomate.
- Sim senhora.
Depois foi a vez de Luciano
entrar em ação. O pagamento. Victória nunca era boa nessa hora. Não demorou
muito, Luciano estava saindo sorrindo. Victória já sabia o que viria e ela não
estava gostando.
- Só me dê o
bendito sanduiche.
- Mas...
- Não.
Os dois entraram no carro preto
e foram embora. Meia hora depois, Luciano estava parando em frente ao
condomínio de Victória. Ele nunca entrava quando ela terminava um trabalho. Ela não deixava apesar de naquele
dia ele insistir muito.
- Sabe, você
algum dia vai ter que se abrir pra alguém.
- Eu já me
abri pra uma pessoa Luciano e não gostei do final.
- Meu Deus
Victória, você não pode viver sozinha pra sempre e...
- Quer apostar? – Victória falou olhando da forma que
Luciano sabia que a conversa estava terminada. Ela saiu, agradeceu o sanduiche
e entrou.
Luciano ainda ficou esperando
até que ela acendesse a luz da sala. Ele sabia que o processo todo demoraria
uns 5 minutos, no máximo. Naquele
dia, porém, Luciano a avistou da janela acenando para ele.
- Feliz
Aniversário! – Ele gritou lá de baixo. Em resposta Victória lhe mostrou o dedo
do meio. Luciano sorriu, entrou no carro e foi embora.
- É... Feliz Aniversário. – Ela falou baixo fechando a
janela e indo deitar. Novamente sozinha.
Victória estava fazendo trinta
anos. Balzaquiana como os amigos do trabalho ficaram brincando com ela durante
o mês inteiro. Pela manhã, ela teve uma festa surpresa ao chegar na escola.
Lembrando disso, com lágrimas nos olhos fechou a janela e foi dormir. O dia
havia sido exaustivo.
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