terça-feira, 23 de junho de 2015

1.

A noite estava calma. Estranho em uma cidade como Manaus. Àquela hora, a cidade deveria estar viva, e não tudo calmo daquela forma. Victória ficou parada em frente à porta observando o movimento da rua. Do outro lado havia um condomínio. A maioria das pessoas estava terminando o jantar. Lembrou-se de que não havia jantado. Acendeu um cigarro. Era a forma que ela encontrava de esquecer o cansaço, a fome e o estresse, mas sua tarefa ainda não havia terminado. Estava dando um tempo. Naquele tipo de trabalho, dar um tempo era mais que necessário tanto para ela quanto para a pessoa dentro da casa.

Então os barulhos recomeçaram. Eram parecidos com latidos, bem, pelo menos quem passasse de carro pensaria que eram latidos. Victória pensou que talvez um buldogue fizesse esse tipo de ruído, ela não saberia dizer com certeza, pois nunca tivera cachorros, ou gatos, ou sequer papagaios. Era sempre ela e a mãe. E, desde que a mãe morreu, no ano passado, Victória ficara responsável pelos negócios da família. Não conhecera seu pai. Segundo sua mãe, ele não aguentou tanto... Serviço.

Olhou para o cigarro, havia acabado de acender. Suspirou, jogou no chão e pisou em cima. Com uma puxada de ar mais forte, entrou. Ela precisaria de todas as forças possíveis para conseguir ter sucesso.

No último quarto da casa havia um senhor de aproximadamente 50 anos. Era ele quem estava fazendo os barulhos. Bem, não necessariamente ele. Victória parou e sentou-se em uma cadeira. Era somente ela e o senhor. Esperou. Em algum momento tudo recomeçaria. E em algum momento ou ela conseguiria sucesso ou ela perderia. E desde que começara, Victoria tinha cem por cento de resultados favoráveis.

- Então quer dizer que a putinha voltou? Sinto cheiro de cigarro. Que foi? Cansou? – O senhor olhava diretamente para ela. Seus olhos estavam inexpressivos. Victória continuou calada observando. – Eu sei que não tens um homem há muito tempo e que desejas muito um na tua cama. Que moral tens de vir aqui? Ele é MEU! – A voz do senhor havia mudado, era hora dela entrar em ação.
- Demônio tu não és tão forte quanto o meu Deus. Ele é o poderoso. Ele é quem comanda e é Ele quem vai salvar a alma desse senhor. Tu aqui não tens poder. O meu Deus é mais forte.
- Teu Deus? Eu vou te falar uma coisa desse teu Deus. Ele não tá nem ai pra vocês. Vocês matam, vocês roubam, vocês mentem. Ele se cansou de vocês e deixou tudo para o meu senhor. O meu senhor, avisou ao filho dele que isso aconteceria. Que pessoas matariam e mentiriam em nome dele.
- Diz teu nome demônio! – Victória começou a falar mais forte e alto com a mão na cabeça do senhor e a mão no crucifixo.
- Se teu Deus é tão forte assim, por que não tentas adivinhar? – A voz agora era grave. Victória pensou que quem escutasse pensaria que estariam assistindo Poltergeist ou O exorcista de tão semelhante que era.
- Diz teu nome em nome de Deus! – Victória agora encostava a cruz na cabeça do senhor. O Suor escorria pela sua têmpora, mas isso sempre acontecia.
- Não! Ele é meu. – A voz agora era de dor.
- Demônio, o meu Deus está ordenando, diz o teu nome! Diz o teu nome pelo Sangue de Jesus crucificado. - O que aconteceu, Victória sabia bem. Um grito doloroso agudo vindo do âmago do Senhor.
- Malak. O meu nome é Malak. Demônio das almas perdidas. – O grito poderia ser escutado da esquina.
- Sai Malak. Tu não tens mais poder sobre essa alma. Essa alma é de Deus, essa alma é abençoada. Vai embora. – Victória segurava a cabeça do senhor que depois de passar cinco minutos gritando, tombou em sua frente.

Agora Victória lavou a cabeça do senhor com água benta depois de virá-lo para ela. A respiração dele foi, aos poucos, voltando ao normal. Ela terminou fazendo o sinal da cruz nos locais das chagas de Cristo com uma mistura antiga de sua família feita de azeite, alecrim, arruda e cânfora. Ela também jogou nas portas e janelas acabando com o vidrinho.

Quando estava terminando a purificação, Luciano chegou em seu carro preto. Era sempre assim. Eles recebiam o chamado, Luciano deixava Victória no local e voltava tempos depois. Caso ainda não estivesse terminado, ele ficaria no carro esperando.

Quando entrou, Luciano sentiu um cheiro forte de cânfora, alecrim e enxofre. Sabia que Victória estaria esgotada, o que provavelmente era o sinal de que os planos dele para aquela noite estavam cancelados. Mas ele também sabia que ela estaria com fome, então entrou com um sanduiche embrulhado dentro de sua bolsa estilo carteiro.

- Esse deu trabalho. Você jogou seu óleo por toda a casa. – Ele falou levantando cuidadosamente o senhor e colocando-o na cama sem esperar nenhuma resposta.
- Foi mais cansativo do que eu pensei. – Ela falou sem fôlego. – Mas não o perdemos.
- Você nunca perde ninguém. – Luciano olhou de canto de olho a reação de Victória.
- Vamos, nosso trabalho aqui terminou. – Falou baixo olhando amorosamente o senhor que agora dormia tranquilo.

Victória e Luciano saíram do quarto e foram encontrar o resto da família três casas adiante. Essa era a hora que Victória menos gostava. Sabia lidar com demônio, não com pessoas.

- Então, ele vai ficar dormindo por um tempo. Aqui tem esse óleo. Passe quando ele acordar e assim que ele for dormir durante sete dias, nem um dia a mais, nem um dia a menos. – Victória falou para a jovem que aparentava ter, no máximo, vinte anos.
- Ele... Ele vai ficar bem mesmo?
- Não se preocupe. Não voltará a acontecer novamente. Mas lembrem-se todos, sempre conversem com Deus e nunca deixem de ir à igreja de vocês, tudo bem? Ele precisará muito disso.
- Não, não, pode deixar.
- Ah, e mais uma coisa, assim que amanhecer, compre peixe.
- Peixe?
- Sim, carne branca, faça um arroz, cozinhe o peixe no azeite, sal, limão e bastante cebola e tomate.
- Sim senhora.

Depois foi a vez de Luciano entrar em ação. O pagamento. Victória nunca era boa nessa hora. Não demorou muito, Luciano estava saindo sorrindo. Victória já sabia o que viria e ela não estava gostando.

- Só me dê o bendito sanduiche.
- Mas...
- Não.

Os dois entraram no carro preto e foram embora. Meia hora depois, Luciano estava parando em frente ao condomínio de Victória. Ele nunca entrava quando ela terminava um trabalho. Ela não deixava apesar de naquele dia ele insistir muito.

- Sabe, você algum dia vai ter que se abrir pra alguém.
- Eu já me abri pra uma pessoa Luciano e não gostei do final.
- Meu Deus Victória, você não pode viver sozinha pra sempre e...
- Quer apostar? – Victória falou olhando da forma que Luciano sabia que a conversa estava terminada. Ela saiu, agradeceu o sanduiche e entrou.

Luciano ainda ficou esperando até que ela acendesse a luz da sala. Ele sabia que o processo todo demoraria uns 5 minutos, no máximo. Naquele dia, porém, Luciano a avistou da janela acenando para ele.

- Feliz Aniversário! – Ele gritou lá de baixo. Em resposta Victória lhe mostrou o dedo do meio. Luciano sorriu, entrou no carro e foi embora.
- É... Feliz Aniversário. – Ela falou baixo fechando a janela e indo deitar. Novamente sozinha.

Victória estava fazendo trinta anos. Balzaquiana como os amigos do trabalho ficaram brincando com ela durante o mês inteiro. Pela manhã, ela teve uma festa surpresa ao chegar na escola. Lembrando disso, com lágrimas nos olhos fechou a janela e foi dormir. O dia havia sido exaustivo.

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