terça-feira, 30 de junho de 2015

2.

Victória abriu os olhos devagar. Parecia que ela havia sido atropelada por um caminhão, mas na verdade era apenas a reação de seu corpo. Por mais exercícios que ela fizesse, seu corpo nunca iria se acostumar. A sensação que tinha era de que acabara de deitar para dormir, mas ao olhar a hora, viu que estava dormindo há pelo menos dez horas seguidas.

Depois de um tempo deitada resolveu levantar e procurar alguma coisa para comer. A empregada havia deixado algumas coisas prontas no frízer. Era só tirar e colocar no micro-ondas para descongelar. Pegou uma lasanha e enquanto ela descongelava, foi até a biblioteca da mãe para ver se ela encontrava alguma informação sobre Malak.

Victória morava em uma casa no estilo do século XIX no centro. Era espaçosa, possuía um pé direito bem alto e dois andares. Três se contar o porão, que era onde ficava a biblioteca da mãe.

Chegou lá e ficou lembrando do tempo que passara lá com a mãe quando criança. Na época ela não fazia ideia do trabalho da mãe. Para ela, sua mãe era apenas uma enfermeira chefe no hospital universitário.

- Vic, não faça isso filha. São coisas do trabalho da mamãe e você não pode brincar com eles, tudo bem?
- Posso ir assistir televisão? Agora deve estar passando o desenho do Mickey.
- Você já estudou? Já fez a tarefa?
- Já mamãe.
- Então pode sim, mas só até a mamãe terminar aqui. Depois vamos sair para comprar sorvete. Que tal?
- Oba!
Victória ficou parada na porta com lágrimas nos olhos. Ela sentia saudades da mãe e depois de sua morte, passou a se sentir extremamente sozinha. Nunca teve um namorado por mais tempo que poucos meses. Quando se apaixonou não terminou da forma que ela esperava. Desde então não deixa ninguém entrar na sua vida.

- Vamos ver, deve ter alguma coisa por aqui sobre esse Malak.

Victória ligou a luz e abriu as três janelas. O local era até ventilado para um porão. Estava cheio de caixas, umas empilhadas nas outras por ordem alfabética. Nelas continha cadernos, todos escritos pela sua mãe como uma espécie de compêndio de todos os demônios e seres das trevas que Tereza havia enfrentado catalogados com imagens, referências, poderes, atuação, tudo.

Procurou a caixa com a letra M. Logo viu que seria mais difícil que ela pensava, pois somente a letra A havia mais de dez com vários cadernos nela. Foi quando escutou o apito do micro-ondas avisando que a comida estava pronta. Suspirou, subiu as escadas correndo e no caminho pegou seu smartphone. Nele havia várias mensagens de Luciano. Ele estava preocupado com ela. Respondeu que havia acordado tarde e que depois ligaria.

Pegou a lasanha e se dirigiu ao porão novamente. Depois de meia hora encontrou a caixa, ou melhor, as caixas da letra M. Teria que levar uma por uma. Eram mais ou menos seis. Pegou a primeira caixa ‘M – Tomo I’, colocou o prato em cima dela e foi para a cozinha. Pegou seu notebook, desde que assumiu o lugar da mãe começou a digitalizar todos os cadernos. Estava longe de terminar, já que estava fazendo isso à medida que iria enfrentando os demônios. O do dia anterior era a letra M.

O primeiro caderno terminava MAC, o último terminava em MAF, ou seja, não era naquela caixa. Voltou ao porão e pegou mais duas caixas. Ela detestava esse trabalho de pesquisa. Se não soubesse que sua mãe era completamente meticulosa em relação às suas anotações jamais procuraria naquelas caixas novamente. Mas a internet, por mais maravilhosa que fosse, não possuía o tipo de informação dos cadernos.

Perdeu a noção do tempo procurando pelo nome Malak. Já estava ficando irritada. A lasanha esfriara no prato. Quando ficava atrás de informações perdia a fome, pelo menos até encontrar o que procurava.

- Droga. – Gritou jogando mais um caderno para longe. – Deve haver uma forma mais fácil de fazer isso.
- Tem. Pedindo ajuda. – Luciano falou sorrindo parado na porta da cozinha.
- Porra, Luciano, que susto me deu. Como você entrou?
- A dona Tereza me deu a chave, esqueceu? Ela sabia que você iria precisar de ajuda. – Ele parou olhando Victória suada, sentada no chão, com o cabelo no rosto. – Posso saber o que você está fazendo?
- Procurando alguma informação sobre Malak. – Victória falou voltando a folhear o caderno que estava em seu colo.
- Achou alguma coisa?
- Nada! – Ela falou jogando o caderno para longe.

Sem falar nada, Luciano sentou-se ao seu lado e pegou um caderno. Ele conhecia a forma de Tereza trabalhara, pois foi, durante anos, seu assistente. Ela o estava preparando para seu trabalho, mas era Victória quem tinha o dom para suportar a carga negativa vinda dos demônios.

Depois de algum tempo, Luciano reparou que Victória ignorava três e-mails sem nem ao menos lê-los. Sabia que se ele perguntasse talvez ela o expulsasse, mas a curiosidade falou mais alto.

- Você não vai responder ao e-mail?
- É uma prima da mamãe. O filho vai casar e queria saber se eu iria. O convite está em cima da mesa. Senha para dois. Imagina só.
- E por que você não vai?
- Luciano, não sei se você notou, mas... estamos no meio de algo importante aqui. – Victoria falou um pouco irritada.
- Vic, chega. Vamos levantar desse chão. Você precisa de um banho. E depois vamos procurar um vestido para você. Antes, claro, vou preparar um almoço decente ou te levar para comer.
- Luc...
- Não. Há quanto tempo você não se diverte? Não sai para ver pessoas?
- Não sei. – Victoria falou sentando em uma cadeira suspirando. – É que... Eu não tenho roupa e...
- E...
- Eu não quero chegar numa festa onde a família da minha mãe toda vai estar e olhar para mim com pena por ter 30 anos e estar sozinha e solteira. – Ela falou de cabeça baixa sentando na cadeira da mesa da cozinha. Luciano se espantou com o fato de ela se abrir assim com ele tão facilmente.
- Vic, qual é? Desde quando você se preocupa com a opinião dos outros? E o seu trabalho na escola? Diretora de um dos colégios mais importantes de Manaus. Isso é para ser comemorado. E tem mais – Ele parou e esperou ela olhar para ele -  Obrigado por me considerar invisível. – Luciano falou sorrindo para ela.
- Você... quer ir comigo? – Ela perguntou num misto de surpresa e alegria.
- Claro! Você acha que eu iria perder a chance de ver você de vestido? Agora vamos, tome um banho que vamos sair para procurar um vestido para você. Depois claro de almoçarmos.

Victoria subiu as escadas correndo para tomar banho. Demorou cerca de meia hora. Logo eles saíram e foram a um shopping atrás de uma roupa para dos dois. Por mais estranho que possa parecer, Victoria estava animada. Claro que não nutria sentimentos amorosos por Luciano, mas ele era o mais próximo que ela tinha de um amigo. Quem mais poderia suportar um segredo tão grande quando o dela?

Enquanto ela escolhia um vestido e sapatos, Luciano comprou um belo terno cinza risca de giz. Seria a primeira vez que eles sairiam juntos e ele queria fazer a noite perfeita para ela. Depois das compras, onde Luciano fez questão de não ver o vestido antes da hora, ele a levou para almoçar. Quando chegaram na casa de Victoria, havia três pessoas na frente da casa esperando por eles.

- Pois não? – Victoria falou ao sair do carro.
- Você se chama Victoria Melo?
- Sim, sou eu.
- Ramon, que bom que você veio logo! – Luciano falou cumprimentando o homem, o que deixou Victoria intrigada.
- Alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui?
- Calma Vic, ele é Ramon, dono daquele salão de beleza das dondocas no Vieiralves. Eu liguei para ele e pedi para vir aqui lhe preparar.
- Eu não preciso...
- Vic, sem discussão. Ramon, se ela for muito desobediente me avise.
- Espere, para onde você está indo?
- Bem, eu também preciso me arrumar, não acha? Pego você às oito, tudo bem?

Victoria ficou aos cuidados de Ramon e da equipe dele. Foi serviço completo, dos pés à cabeça. As moças ainda a ajudaram a vestir o vestido. Era amarelo pastel, tomara que caia e um sapato preto.

- Ele gosta muito da senhora! – Falou uma das manicures.
- Quem?
- O senhor Luciano. Ele gosta muito da senhora.
- Engano seu. Ele só está fazendo um favor para mim.

Victoria não falou mais nada e ficou pensando no que as manicures falaram. Se viu no espelho e não reconheceu a mulher no reflexo. Cabelos penteados presos numa fivela linda. Maquiagem perfeita, discreta, mas marcante e um vestido digno de desenho animado. Sorrindo ficou se vendo feito uma garota de colegial. Aparentemente, ela teria a sua noite de baile, mesmo que ela não fosse a personagem principal.

Não demorou muito para Luciano chegar e chamar por ela. Ele também estava nervoso. Decidira em cima da hora que a levaria ao casamento. Sabia que ela precisava se divertir um pouco, mas também estava esperando por uma oportunidade de tentar se aproximar. E que melhor oportunidade do que uma festa de casamento? Ele estava tomando um gole de água quando ela apareceu no topo da escada. Ele se engasgou. Sabia que a amiga era bonita, mas naquele vestido ela estava deslumbrante. Seus cabelos pretos presos pela metade faziam ondas até o meio das costas. A cor de vestido realçava a cor de sua pele e de seus olhos.

- Você está maravilhosa! – Ele falou quase sem voz.
- Ah pare! – Ela falou vermelha.
- Não, eu... estou falando sério. – Ele falou subindo a escada e dando uma das mãos para ela descer direito. Sabia que Victoria não tinha muita experiência com saltos altos.
- Será que vão reparar se eu tirar os sapatos no meio da festa? Meus pés estão me matando!
- Vamos Vic. Vamos nos divertir – Ele falou sorrindo levando-a até o carro.

Quando os dois chegaram ao casamento, como Victoria previu, vieram todos falar com ela querendo saber quem era o belo rapaz que estava ao seu lado. Victoria se atreveu a dizer que ele a estava acompanhando, mas nada mais que isso. 

A mãe do noivo os colocou em uma mesa a dois, o que Victoria e Luciano deduziram que ela pensou que eles fossem um casal. O casamento estava marcado para as nove e começou na hora marcada. Durante toda a cerimônia, Luciano ficou com o braço esquerdo envolvendo a cintura de Victoria. A princípio ele pensou que ela fosse se afastar, mas sorriu ao ver que ela gostara do gesto.

Depois de toda a cerimônia era hora dos casais irem para a pista de dança. Nessa hora Victoria voltou à mesa e Luciano estranhou. Chegou a pensar que ela não gostaria que a vissem junto com ele, mas não fazia nenhum sentido, pois ela ficara abraçada com ele mais tempo.

- Qual o problema? – Ele perguntou sentando ao lado dela. Viu que Victoria estava um pouco assustada.
- É que eu... não sei dançar.
- Você o quê? – Ele perguntou às gargalhadas.
- Não ria, nunca participei de nada parecido. – Ela falou envergonhada.
- Vem – Ele falou levantando e estendendo a mão para ela. – Essa noite, eu vou ser seu guia e protetor.

Ele a puxou para a pista de dança e lentamente começaram a se mover. Victoria sorriu para ele quando notou que ela estava dançando. Luciano era um ótimo par de dança e foi a primeira vez que Victoria notou o quanto o sorriso dele era bonito. Sorrisos era o fraco dela. Notou também quão elegante e educado Luciano era. Victoria ficou querendo saber mais dele. Luciano por sua vez não queria demonstrar o nervosismo. Sempre quis estar próximo assim dela, mas nunca encontrou o momento certo. O casamento estava sendo a primeira oportunidade para ele tentar demonstrar um pouco mais dos seus sentimentos, mas sabia como Victoria reagia sempre que alguém tentava entrar em sua vida. Mas quem mais poderia ser o par dela?

Num movimento mais ousado, os dois foram se aproximando para o beijo que a muito tempo estava guardado para eles. Victoria, por mais nervosa que estivesse e que seus sentidos gritassem para ela parar com toda aquela loucura, não conseguia desviar o olhar. E Luciano? Bem, ele não estava mais pensando em nada. 

Quando os dois estavam quase com seus lábios se tocando, todos se assustaram com o grito que veio do meio da pista de dança. Sua tia, mãe do noivo estava envolva de chamas vermelhas e brancas. Victoria sabia o que significava, e ficou com ódio por, mais uma vez, eles terem estragado o momento perfeito.

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