Victória
abriu os olhos devagar. Parecia que ela havia sido atropelada por um caminhão,
mas na verdade era apenas a reação de seu corpo. Por mais exercícios que ela
fizesse, seu corpo nunca iria se acostumar. A sensação que tinha era de que
acabara de deitar para dormir, mas ao olhar a hora, viu que estava dormindo há
pelo menos dez horas seguidas.
Depois
de um tempo deitada resolveu levantar e procurar alguma coisa para comer. A
empregada havia deixado algumas coisas prontas no frízer. Era só tirar e
colocar no micro-ondas para descongelar. Pegou uma lasanha e enquanto ela
descongelava, foi até a biblioteca da mãe para ver se ela encontrava alguma
informação sobre Malak.
Victória
morava em uma casa no estilo do século XIX no centro. Era espaçosa, possuía um
pé direito bem alto e dois andares. Três se contar o porão, que era onde ficava
a biblioteca da mãe.
Chegou
lá e ficou lembrando do tempo que passara lá com a mãe quando criança. Na época
ela não fazia ideia do trabalho da mãe. Para ela, sua mãe era apenas uma
enfermeira chefe no hospital universitário.
- Vic, não faça isso filha. São coisas
do trabalho da mamãe e você não pode brincar com eles, tudo bem?
- Posso ir assistir televisão? Agora
deve estar passando o desenho do Mickey.
- Você já estudou? Já fez a tarefa?
- Já mamãe.
- Então pode sim, mas só até a mamãe
terminar aqui. Depois vamos sair para comprar sorvete. Que tal?
- Oba!
Victória
ficou parada na porta com lágrimas nos olhos. Ela sentia saudades da mãe e
depois de sua morte, passou a se sentir extremamente sozinha. Nunca teve um
namorado por mais tempo que poucos meses. Quando se apaixonou não terminou da
forma que ela esperava. Desde então não deixa ninguém entrar na sua vida.
- Vamos ver,
deve ter alguma coisa por aqui sobre esse Malak.
Victória
ligou a luz e abriu as três janelas. O local era até ventilado para um porão.
Estava cheio de caixas, umas empilhadas nas outras por ordem alfabética. Nelas
continha cadernos, todos escritos pela sua mãe como uma espécie de compêndio de
todos os demônios e seres das trevas que Tereza havia enfrentado catalogados
com imagens, referências, poderes, atuação, tudo.
Procurou
a caixa com a letra M. Logo viu que seria mais difícil que ela pensava, pois
somente a letra A havia mais de dez com vários cadernos nela. Foi quando
escutou o apito do micro-ondas avisando que a comida estava pronta. Suspirou,
subiu as escadas correndo e no caminho pegou seu smartphone. Nele havia várias
mensagens de Luciano. Ele estava preocupado com ela. Respondeu que havia
acordado tarde e que depois ligaria.
Pegou
a lasanha e se dirigiu ao porão novamente. Depois de meia hora encontrou a
caixa, ou melhor, as caixas da letra M. Teria que levar uma por uma. Eram mais
ou menos seis. Pegou a primeira caixa ‘M – Tomo I’, colocou o prato em cima
dela e foi para a cozinha. Pegou seu notebook, desde que assumiu o lugar da mãe
começou a digitalizar todos os cadernos. Estava longe de terminar, já que
estava fazendo isso à medida que iria enfrentando os demônios. O do dia
anterior era a letra M.
O
primeiro caderno terminava MAC, o último terminava em MAF, ou seja, não era
naquela caixa. Voltou ao porão e pegou mais duas caixas. Ela detestava esse
trabalho de pesquisa. Se não soubesse que sua mãe era completamente meticulosa
em relação às suas anotações jamais procuraria naquelas caixas novamente. Mas a
internet, por mais maravilhosa que fosse, não possuía o tipo de informação dos
cadernos.
Perdeu
a noção do tempo procurando pelo nome Malak. Já estava ficando irritada. A
lasanha esfriara no prato. Quando ficava atrás de informações perdia a fome,
pelo menos até encontrar o que procurava.
- Droga. – Gritou jogando mais um
caderno para longe. – Deve haver uma forma mais fácil de fazer isso.
- Tem. Pedindo ajuda. – Luciano falou
sorrindo parado na porta da cozinha.
- Porra, Luciano, que susto me deu. Como
você entrou?
- A dona Tereza me deu a chave,
esqueceu? Ela sabia que você iria precisar de ajuda. – Ele parou olhando
Victória suada, sentada no chão, com o cabelo no rosto. – Posso saber o que
você está fazendo?
- Procurando alguma informação sobre
Malak. – Victória falou voltando a folhear o caderno que estava em seu colo.
- Achou alguma coisa?
- Nada! – Ela
falou jogando o caderno para longe.
Sem
falar nada, Luciano sentou-se ao seu lado e pegou um caderno. Ele conhecia a
forma de Tereza trabalhara, pois foi, durante anos, seu assistente. Ela o
estava preparando para seu trabalho, mas era Victória quem tinha o dom para
suportar a carga negativa vinda dos demônios.
Depois
de algum tempo, Luciano reparou que Victória ignorava três e-mails sem nem ao
menos lê-los. Sabia que se ele perguntasse talvez ela o expulsasse, mas a
curiosidade falou mais alto.
- Você não vai responder ao e-mail?
- É uma prima da mamãe. O filho vai
casar e queria saber se eu iria. O convite está em cima da mesa. Senha para
dois. Imagina só.
- E por que você não vai?
- Luciano, não sei se você notou, mas...
estamos no meio de algo importante aqui. – Victoria falou um pouco irritada.
- Vic, chega. Vamos levantar desse chão.
Você precisa de um banho. E depois vamos procurar um vestido para você. Antes,
claro, vou preparar um almoço decente ou te levar para comer.
- Luc...
- Não. Há quanto tempo você não se
diverte? Não sai para ver pessoas?
- Não sei. – Victoria falou sentando em
uma cadeira suspirando. – É que... Eu não tenho roupa e...
- E...
- Eu não quero chegar numa festa onde a
família da minha mãe toda vai estar e olhar para mim com pena por ter 30 anos e
estar sozinha e solteira. – Ela falou de cabeça baixa sentando na cadeira da
mesa da cozinha. Luciano se espantou com o fato de ela se abrir assim com ele
tão facilmente.
- Vic, qual é? Desde quando você se
preocupa com a opinião dos outros? E o seu trabalho na escola? Diretora de um
dos colégios mais importantes de Manaus. Isso é para ser comemorado. E tem mais
– Ele parou e esperou ela olhar para ele - Obrigado por me considerar invisível. –
Luciano falou sorrindo para ela.
- Você... quer ir comigo? – Ela
perguntou num misto de surpresa e alegria.
- Claro! Você
acha que eu iria perder a chance de ver você de vestido? Agora vamos, tome um
banho que vamos sair para procurar um vestido para você. Depois claro de
almoçarmos.
Victoria
subiu as escadas correndo para tomar banho. Demorou cerca de meia hora. Logo
eles saíram e foram a um shopping atrás de uma roupa para dos dois. Por mais
estranho que possa parecer, Victoria estava animada. Claro que não nutria
sentimentos amorosos por Luciano, mas ele era o mais próximo que ela tinha de
um amigo. Quem mais poderia suportar um segredo tão grande quando o dela?
Enquanto
ela escolhia um vestido e sapatos, Luciano comprou um belo terno cinza risca de
giz. Seria a primeira vez que eles sairiam juntos e ele queria fazer a noite
perfeita para ela. Depois das compras, onde Luciano fez questão de não ver o
vestido antes da hora, ele a levou para almoçar. Quando chegaram na casa de
Victoria, havia três pessoas na frente da casa esperando por eles.
- Pois não? – Victoria falou ao sair do
carro.
- Você se chama Victoria Melo?
- Sim, sou eu.
- Ramon, que bom que você veio logo! –
Luciano falou cumprimentando o homem, o que deixou Victoria intrigada.
- Alguém pode me explicar o que está
acontecendo aqui?
- Calma Vic, ele é Ramon, dono daquele
salão de beleza das dondocas no Vieiralves. Eu liguei para ele e pedi para vir
aqui lhe preparar.
- Eu não preciso...
- Vic, sem discussão. Ramon, se ela for
muito desobediente me avise.
- Espere, para onde você está indo?
- Bem, eu
também preciso me arrumar, não acha? Pego você às oito, tudo bem?
Victoria
ficou aos cuidados de Ramon e da equipe dele. Foi serviço completo, dos pés à
cabeça. As moças ainda a ajudaram a vestir o vestido. Era amarelo pastel, tomara
que caia e um sapato preto.
- Ele gosta muito da senhora! – Falou
uma das manicures.
- Quem?
- O senhor Luciano. Ele gosta muito da
senhora.
- Engano seu.
Ele só está fazendo um favor para mim.
Victoria
não falou mais nada e ficou pensando no que as manicures falaram. Se viu no
espelho e não reconheceu a mulher no reflexo. Cabelos penteados presos numa
fivela linda. Maquiagem perfeita, discreta, mas marcante e um vestido digno de
desenho animado. Sorrindo ficou se vendo feito uma garota de colegial. Aparentemente,
ela teria a sua noite de baile, mesmo que ela não fosse a personagem principal.
Não
demorou muito para Luciano chegar e chamar por ela. Ele também estava nervoso.
Decidira em cima da hora que a levaria ao casamento. Sabia que ela precisava se
divertir um pouco, mas também estava esperando por uma oportunidade de tentar
se aproximar. E que melhor oportunidade do que uma festa de casamento? Ele
estava tomando um gole de água quando ela apareceu no topo da escada. Ele se
engasgou. Sabia que a amiga era bonita, mas naquele vestido ela estava
deslumbrante. Seus cabelos pretos presos pela metade faziam ondas até o meio
das costas. A cor de vestido realçava a cor de sua pele e de seus olhos.
- Você está maravilhosa! – Ele falou
quase sem voz.
- Ah pare! – Ela falou vermelha.
- Não, eu... estou falando sério. – Ele
falou subindo a escada e dando uma das mãos para ela descer direito. Sabia que
Victoria não tinha muita experiência com saltos altos.
- Será que vão reparar se eu tirar os
sapatos no meio da festa? Meus pés estão me matando!
- Vamos Vic.
Vamos nos divertir – Ele falou sorrindo levando-a até o carro.
Quando
os dois chegaram ao casamento, como Victoria previu, vieram todos falar com ela
querendo saber quem era o belo rapaz que estava ao seu lado. Victoria se
atreveu a dizer que ele a estava acompanhando, mas nada mais que isso.
A
mãe do noivo os colocou em uma mesa a dois, o que Victoria e Luciano deduziram
que ela pensou que eles fossem um casal. O casamento estava marcado para as
nove e começou na hora marcada. Durante toda a cerimônia, Luciano ficou com o
braço esquerdo envolvendo a cintura de Victoria. A princípio ele pensou que ela
fosse se afastar, mas sorriu ao ver que ela gostara do gesto.
Depois de toda a
cerimônia era hora dos casais irem para a pista de dança. Nessa hora Victoria
voltou à mesa e Luciano estranhou. Chegou a pensar que ela não gostaria que a
vissem junto com ele, mas não fazia nenhum sentido, pois ela ficara abraçada
com ele mais tempo.
- Qual o problema? – Ele perguntou
sentando ao lado dela. Viu que Victoria estava um pouco assustada.
- É que eu... não sei dançar.
- Você o quê? – Ele perguntou às
gargalhadas.
- Não ria, nunca participei de nada
parecido. – Ela falou envergonhada.
- Vem – Ele
falou levantando e estendendo a mão para ela. – Essa noite, eu vou ser seu guia
e protetor.
Ele
a puxou para a pista de dança e lentamente começaram a se mover. Victoria
sorriu para ele quando notou que ela estava dançando. Luciano era um ótimo par
de dança e foi a primeira vez que Victoria notou o quanto o sorriso dele era
bonito. Sorrisos era o fraco dela. Notou também quão elegante e educado Luciano
era. Victoria ficou querendo saber mais dele. Luciano por sua vez não queria
demonstrar o nervosismo. Sempre quis estar próximo assim dela, mas nunca
encontrou o momento certo. O casamento estava sendo a primeira oportunidade
para ele tentar demonstrar um pouco mais dos seus sentimentos, mas sabia como
Victoria reagia sempre que alguém tentava entrar em sua vida. Mas quem mais
poderia ser o par dela?
Num movimento mais
ousado, os dois foram se aproximando para o beijo que a muito tempo estava
guardado para eles. Victoria, por mais nervosa que estivesse e que seus
sentidos gritassem para ela parar com toda aquela loucura, não conseguia
desviar o olhar. E Luciano? Bem, ele não estava mais pensando em nada.
Quando
os dois estavam quase com seus lábios se tocando, todos se assustaram com o
grito que veio do meio da pista de dança. Sua tia, mãe do noivo estava envolva
de chamas vermelhas e brancas. Victoria sabia o que significava, e ficou com
ódio por, mais uma vez, eles terem estragado o momento perfeito.
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