sexta-feira, 28 de agosto de 2015

3.

Victoria ficou observando todos os outros convidados ao redor dela rindo e batendo palmas. Para eles, a mãe do noivo estava dançando alegremente depois de algumas boas doses de champanhe. Mas para Victoria, a cena estava de completo terror. Sua tia envolta em chamas gritando desesperada para se livrar delas.
Luciano, que também não conseguia enxergar as chamas também começou a bater palmas, apesar de em seu rosto aparentar a frustração de não ter beijado Victória. Ao olhar para ela, ele percebeu que não era apenas uma cena de bebedeira.

- Eu vou buscar as coisas. Eu as deixo no porta malas.
- Tome cuidado. – Victoria falou tentando manter a calma, mas ela estava completamente assustada.

Eles estavam ficando mais ousados, e ela ainda não estava completamente pronta. Ainda havia pontos em seu treinamento que ela não havia testado, como, por exemplo, o que fazer quando há manifestação pública assim.
A primeira coisa que ela precisava fazer era chamar a atenção de quem quer que estivesse no corpo de sua tia. O que seria complicado sem chamar atenção para ela mesma. Mas não havia outra alternativa. Suspirou e entrou na roda para dançar com a tia. Ela sorriu, riu o dançou com quem quer que fosse. Aos poucos foi se afastando fazendo com que o demônio a seguisse também.
Quando estavam longe das pessoas o suficiente para que a conversa não pudesse ser ouvida, Victoria parou. Tirou aqueles sapatos desconfortáveis para poder ter um apoio melhor. Se tivesse que agir, queria estar com seu equilíbrio completamente dominado.

- Olha, se não é a putinha! Olá, nos encontramos de novo. – A voz falou sorrindo. Baixo, o que surpreendeu Victória.
- Desculpe, mas acho que não fomos apresentados. – Ela falou sorrindo de volta.
- Oh! – Ele soltou um som de total desapontamento. – Estou desapontado com você, Vic. Fomos oficialmente apresentados ontem. – Ele falou com o olhar em chamas. Victoria tentou não demonstrar a surpresa, o que foi em vão. – Oh, desculpe, você pensou que havia me derrotado? É mesmo uma pena, não é?
- Pena é o que eu menos estou sentindo agora. Posso saber como você voltou? E como conseguiu se manifestar dentro da casa de Deus?
- Casa... Casa de Deus? – Ele começou a rir. – Onde, em nome desse teu Deus, você está vendo um crucifixo? – Victória se tocou, eles não estavam em uma igreja. Estavam em um salão de festas, e em salão de festas não havia crucifixos. – Viu? Foi fácil. – Ele falou pegando uma taça de um garçom que se aproximou.
- O que você quer? – Victoria perguntou depois que o garçom se afastou.
- Bem, eu vim aqui lhe dar um recado, mas claro que antes, eu não poderia perder a festa. E... Levar alguém comigo, obviamente.
- Eu já derrotei você uma vez, demônio. Posso fazê-lo novamente. – Ela falou com raiva. Notou que ele ficou olhando para ela por tempo demais sem falar nada. – O que você está olhando.
- Você! – Ele falou sério. – Sabe, eu conheci sua mãe, certa vez. A temível caçadora de demônios. Tão poderosa que, até mesmo meu senhor, tinha cuidado com ela. Mas você? Tão fraca, tão insegura... Depois de ontem, meu senhor, me mandou de volta para que eu lhe dissesse que ele tem planos para você. Em minha humilde opinião, você está apenas... perdendo. - Ele falou voltando a sorrir.
- Como você ousa falar da minha mãe, demônio? – Victoria havia tentado parar de se controlar há algum tempo. Ela estava irritada; não somente pelo beijo perdido, mas por tudo.
- Com a sua mãe foi complicado. Ela não só sabia todas as nossas fraquezas como sabia também como nos dominar de forma rápida e eficaz. Quando eu a enfrentei não tive nem sequer tempo de conversar, como estou tendo com você.
             Eu lembro de você. A vi certa vez. Naquela época você deveria não ter mais de dez, onze anos. Uma criança linda. Sabe por que não conseguimos nos manifestar em crianças? Porque elas têm proteção especial. Vai sumindo à medida que envelhecem. Aos dezesseis já são completamente desprotegidas. Mas não você. Sua proteção, assim como o escudo de sua mãe só sumiram quando ela morreu. Meu senhor ainda tentou trazê-la para nós, mas... Alguém lá em cima já havia chamado. Foi mesmo uma pena. – Malak estava falando e notou que Victoria começara a chorar, ficando mais desprotegida ainda.
- I-isso é... mentira. – Ela tentou falar mais alto.
- Oh, que bonitinha. Você mesmo acredita que pode nos deter. Menina, os planos que temos, não só para você, mas para toda essa corja que você chama de humanos está além da sua compreensão.
- Em nome de Deus eu te ordeno demônio...
- Você não ordena nada. Acho que sua mãe esqueceu de falar que, você não pode usar as mesmas palavras no mesmo demônio se já o enfrentou. Acho que Tereza não contou isso para você, não é mesmo?
- Pelo sangue de Cristo...
- Olha esse papo já cansou. – Ele falou sem nem ao menos demonstrar fraqueza. – Vim aqui dar o recado do meu senhor para você. Que é: Sua alma é nossa! – Ele falou rindo.

O cheiro característico de enxofre tomou conta de todo o lugar. Victoria estava completamente desprevenida, mas aparentemente só ela estava sentindo. Viu o corpo de sua tia, já sem vida cair no chão. Seus olhos estavam arregalados demonstrando todo o terror que havia sido para a sua alma aqueles poucos minutos em que Malak estava manifestado nela.
Foi quando escutou um grito. Um dos convidados viu o momento exato que sua tia caía chamando atenção de todos na festa. Marcelo, o noivo, foi o primeiro a aparecer ao lado de Victoria, que já segurava a cabeça da tia chorando. Então foi aquela confusão.
Foi uma cena de total desespero que Luciano encontrou quando voltou com sua bolsa carteiro. Ele sabia que não havia demorado mais que poucos minutos, mas sabia que os objetos dentro de sua bolsa já não eram mais necessários. Procurou Victória.

- Vic? – Ele falou baixo se ajoelhando ao lado dela com uma mão em seu ombro.
- A minha tia, ela...
- O que aconteceu? – Ele perguntou ao noivo e a um médico que estava com um estetoscópio examinando o corpo.
- É difícil de avaliar assim, mas a meu ver foi um ataque cardíaco. Você não podia fazer nada. – O médico falou para Victoria.
- A mamãe já estava doente um tempo. Eu pedia para ela se cuidar, mas ela era teimosa.
- Marcelo... Me.... Desculpa! – Victoria falou lagrimando mais forte.
- Não Vic. Você não teve culpa. Ela estava rindo com você. Morreu feliz.

As palavras de Marcelo pioraram mais ainda a culpa de Victoria. Ela se virou e abraçou forte Luciano que ficou ajoelhado ao lado dela sem falar mais nada. Ele sabia os motivos de ela ter pedido perdão.

- É melhor você levá-la para casa. Fico feliz que ela tenha você como namorado. Não a deixe sozinha hoje, tudo bem?

Luciano fez um sinal positivo para o noivo pegando Victoria e a levando embora dali. Eles não viram, mas ao longe, um senhor de cabelos completamente brancos os observava atentamente. Levantou assim que Luciano sumiu saindo pela porta.
Ao chegar ao carro a primeira coisa que Luciano fez foi tirar aquele paletó quente e afrouxar a gravata. A noite seria longa e ele queria estar confortável. Durante todo o caminho, Victória não falou nada, apenas chorava silenciosamente. Essa situação deixava Luciano totalmente desconfortável. Queria ajudar mais Victoria, mas não sabia como.
Depois de estacionar o carro, Victoria saiu e foi direto para o quarto. Da cozinha, Luciano pode escutar barulhos de coisas se quebrando. Ele deixou que ela tentasse se acalmar primeiro. Enquanto esperava preparou uma comida leve para os dois. Passava da meia noite e eles não haviam comido nada. Ele ficou se perguntando o que acontecera durante sua ausência. Meia hora depois ele subia as escadas com uma bandeja com um prato de comida.

- Vic? Vic? Sou eu! Você quer comer alguma coisa? Ainda não comeu nada. – Ele falou batendo na porta. Esperou e não houve resposta. – Bem, a bandeja vai ficar aqui na sua porta caso você sinta fome. Eu vou estar na sala.

Luciano trocou de roupa, sempre levava uma muda de roupa na sua bolsa, colocou uma camiseta azul clara e um short e foi tentar se arrumar no sofá da sala. Ele lembra de sempre dormir lá quando criança, mas à medida que foi crescendo, passou a não caber mais nele direito. Com seu 1,88 ficava difícil encontrar posição confortável.
Ele pegou um dos cadernos de Tereza e ficou lendo. Tentando entender o que estava acontecendo. Boa parte das anotações dela eram sobre demônios. Procurou o nome Malak sem sucesso, ele ainda estava tentando encontrar informações sobre o demônio que eles enfrentaram na noite anterior. Ao invés disso, ao final do caderno, encontrou informações gerais.

Não se pode usar o mesmo conjunto de palavras mais de uma vez no mesmo demônio. Fazendo isso, você demonstrará fraqueza e alimentará mais o demônio. É necessário ter um vocabulário forte para isso.
Não se pode também enfrentá-los em locais públicos ou com muitas pessoas. As energias misturadas o tornam mais forte, pois não devemos esquecer que eles se alimentam das emoções humanas, principalmente as negativas. E em locais com muitas pessoas, várias emoções estão misturadas.
E mais importante de tudo, não se deve, de forma alguma, tentar enfrenta-los sem ao menos um terço por perto. O símbolo da cruz os enfraquece somente com a sua presença. Estando desprotegida, você será uma presa fácil. ”

Luciano ia lendo e começava a entender o que havia acontecido. Victória havia tentado enfrenta-lo sozinha, e no meio de várias pessoas. Não foi difícil também entender que se tratava de Malak; mas como ele havia conseguido voltar num curto espaço de tempo e bem mais forte eram as dúvidas que mais o estavam intrigando.
Luciano acordou com um barulho vindo da cozinha. Assustado pegou um vaso e foi com cuidado para o local do barulho. Relaxou quando viu que era Victoria fazendo café. Ela estava com os olhos vermelhos.

- Você não pregou o olho, não foi? – Luciano perguntou colocando o vaso em cima da mesa. Não houve resposta. – Vai, deixa eu fazer isso, senta ali que eu faço seu café.

Victoria demorou um pouco, mas deixou Luciano assumir os preparativos do café. Ele notou que a bandeja estava perto da pia intocada. Sem falar nada preparou ovos mexidos e panquecas. Não era bem o café típico de Manaus, mas não havia nem macaxeira nem tucumã.

- Eu não pude salvá-la! – Victória falou baixo. Luciano permaneceu calado esperando. – Eu fui descuidada, deveria estar com meu crucifixo, deveria ter levado ao menos água benta.
- Você não podia deduzir que isso aconteceria, Vic.
- Eu sou uma caçadora, Luciano. TENHO que estar preparada pra coisas assim. Fui descuidada, fui arrogante achando...
- Você foi pega de surpresa, apenas. Agora venha, você não comeu nada ainda e definitivamente, estar de estômago vazio não ajuda em nada. – Ele falou colocando a mesa. O cheiro de café recém coado fez a barriga de Victoria avisar que estava vazia. – Além do mais, você pode usar essa perda para aprender mais sobre o trabalho da sua mãe, não acha? – Ele falou sorrindo para ela. Victoria notou que o sorriso dele melhorava seu dia em cem por cento.

Eles comeram em silêncio. Se Victoria tivesse vizinhos eles olhariam uma cena de um casal começando a tomar café cedo em pleno domingo. Ela começou a lagrimar novamente. Deixou a comida pela metade.

- Vic... – Luciano falou se levantando e a abraçando. – Você tem que levantar a cabeça e...

Eles ouviram a campainha. Luciano foi ver quem era. Pela janela viu um senhor de seus 60 anos parado no portão. Ele parecia estar usando um hábito, mas Luciano pensou que talvez fosse coisa de sua cabeça. Ele abriu a porta.

- Bom dia.
- Oh, bom dia. Desculpe, aqui é a casa da Tereza Melo?
- Costumava ser.
- Costumava?
- Ela morreu faz um ano, senhor...?
- Oh, que falta de Educação. André. André Andrade. A seu serviço.
- Bem, se o senhor não se incomodar eu...
- Ela perdeu uma alma ontem, não foi? – O senhor perguntou sem cerimônia. – Essas coisas podem acontecer quando não se tem o treinamento certo.
- Desculpa, quem é o senhor? – Luciano perguntou preocupado.
- O mestre de Tereza. E agora de Victoria. O senhor vai ou não me deixar entrar? Victoria não sabe ainda, mas a alma dela está correndo perigo.

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