Victoria
ficou observando todos os outros convidados ao redor dela rindo e batendo
palmas. Para eles, a mãe do noivo estava dançando alegremente depois de algumas
boas doses de champanhe. Mas para Victoria, a cena estava de completo terror.
Sua tia envolta em chamas gritando desesperada para se livrar delas.
Luciano,
que também não conseguia enxergar as chamas também começou a bater palmas,
apesar de em seu rosto aparentar a frustração de não ter beijado Victória. Ao
olhar para ela, ele percebeu que não era apenas uma cena de bebedeira.
- Eu vou buscar as coisas. Eu as deixo
no porta malas.
- Tome cuidado.
– Victoria falou tentando manter a calma, mas ela estava completamente
assustada.
Eles
estavam ficando mais ousados, e ela ainda não estava completamente pronta.
Ainda havia pontos em seu treinamento que ela não havia testado, como, por
exemplo, o que fazer quando há manifestação pública assim.
A
primeira coisa que ela precisava fazer era chamar a atenção de quem quer que
estivesse no corpo de sua tia. O que seria complicado sem chamar atenção para
ela mesma. Mas não havia outra alternativa. Suspirou e entrou na roda para
dançar com a tia. Ela sorriu, riu o dançou com quem quer que fosse. Aos poucos
foi se afastando fazendo com que o demônio a seguisse também.
Quando
estavam longe das pessoas o suficiente para que a conversa não pudesse ser
ouvida, Victoria parou. Tirou aqueles sapatos desconfortáveis para poder ter um
apoio melhor. Se tivesse que agir, queria estar com seu equilíbrio
completamente dominado.
- Olha, se não é a putinha! Olá, nos
encontramos de novo. – A voz falou sorrindo. Baixo, o que surpreendeu Victória.
- Desculpe, mas acho que não fomos
apresentados. – Ela falou sorrindo de volta.
- Oh! – Ele soltou um som de total
desapontamento. – Estou desapontado com você, Vic. Fomos oficialmente
apresentados ontem. – Ele falou com o olhar em chamas. Victoria tentou não
demonstrar a surpresa, o que foi em vão. – Oh, desculpe, você pensou que havia
me derrotado? É mesmo uma pena, não é?
- Pena é o que eu menos estou sentindo
agora. Posso saber como você voltou? E como conseguiu se manifestar dentro da
casa de Deus?
- Casa... Casa de Deus? – Ele começou a
rir. – Onde, em nome desse teu Deus, você está vendo um crucifixo? – Victória
se tocou, eles não estavam em uma igreja. Estavam em um salão de festas, e em
salão de festas não havia crucifixos. – Viu? Foi fácil. – Ele falou pegando uma
taça de um garçom que se aproximou.
- O que você quer? – Victoria perguntou
depois que o garçom se afastou.
- Bem, eu vim aqui lhe dar um recado,
mas claro que antes, eu não poderia perder a festa. E... Levar alguém comigo,
obviamente.
- Eu já derrotei você uma vez, demônio.
Posso fazê-lo novamente. – Ela falou com raiva. Notou que ele ficou olhando
para ela por tempo demais sem falar nada. – O que você está olhando.
- Você! – Ele falou sério. – Sabe, eu
conheci sua mãe, certa vez. A temível caçadora de demônios. Tão poderosa que,
até mesmo meu senhor, tinha cuidado com ela. Mas você? Tão fraca, tão
insegura... Depois de ontem, meu senhor, me mandou de volta para que eu lhe
dissesse que ele tem planos para você. Em minha humilde opinião, você está
apenas... perdendo. - Ele falou voltando a sorrir.
- Como você ousa falar da minha mãe,
demônio? – Victoria havia tentado parar de se controlar há algum tempo. Ela
estava irritada; não somente pelo beijo perdido, mas por tudo.
- Com a sua mãe foi complicado. Ela não
só sabia todas as nossas fraquezas como sabia também como nos dominar de forma
rápida e eficaz. Quando eu a enfrentei não tive nem sequer tempo de conversar,
como estou tendo com você.
Eu
lembro de você. A vi certa vez. Naquela época você deveria não ter mais de dez,
onze anos. Uma criança linda. Sabe por que não conseguimos nos manifestar em
crianças? Porque elas têm proteção especial. Vai sumindo à medida que
envelhecem. Aos dezesseis já são completamente desprotegidas. Mas não você. Sua
proteção, assim como o escudo de sua mãe só sumiram quando ela morreu. Meu
senhor ainda tentou trazê-la para nós, mas... Alguém lá em cima já havia
chamado. Foi mesmo uma pena. – Malak estava falando e notou que Victoria
começara a chorar, ficando mais desprotegida ainda.
- I-isso é... mentira. – Ela tentou
falar mais alto.
- Oh, que bonitinha. Você mesmo acredita
que pode nos deter. Menina, os planos que temos, não só para você, mas para
toda essa corja que você chama de humanos está além da sua compreensão.
- Em nome de Deus eu te ordeno
demônio...
- Você não ordena nada. Acho que sua mãe
esqueceu de falar que, você não pode usar as mesmas palavras no mesmo demônio
se já o enfrentou. Acho que Tereza não contou isso para você, não é mesmo?
- Pelo sangue de Cristo...
- Olha esse
papo já cansou. – Ele falou sem nem ao menos demonstrar fraqueza. – Vim aqui
dar o recado do meu senhor para você. Que é: Sua alma é nossa! – Ele falou
rindo.
O
cheiro característico de enxofre tomou conta de todo o lugar. Victoria estava
completamente desprevenida, mas aparentemente só ela estava sentindo. Viu o
corpo de sua tia, já sem vida cair no chão. Seus olhos estavam arregalados
demonstrando todo o terror que havia sido para a sua alma aqueles poucos
minutos em que Malak estava manifestado nela.
Foi
quando escutou um grito. Um dos convidados viu o momento exato que sua tia caía
chamando atenção de todos na festa. Marcelo, o noivo, foi o primeiro a aparecer
ao lado de Victoria, que já segurava a cabeça da tia chorando. Então foi aquela
confusão.
Foi
uma cena de total desespero que Luciano encontrou quando voltou com sua bolsa
carteiro. Ele sabia que não havia demorado mais que poucos minutos, mas sabia
que os objetos dentro de sua bolsa já não eram mais necessários. Procurou
Victória.
- Vic? – Ele falou baixo se ajoelhando
ao lado dela com uma mão em seu ombro.
- A minha tia, ela...
- O que aconteceu? – Ele perguntou ao
noivo e a um médico que estava com um estetoscópio examinando o corpo.
- É difícil de avaliar assim, mas a meu
ver foi um ataque cardíaco. Você não podia fazer nada. – O médico falou para
Victoria.
- A mamãe já estava doente um tempo. Eu
pedia para ela se cuidar, mas ela era teimosa.
- Marcelo... Me.... Desculpa! – Victoria
falou lagrimando mais forte.
- Não Vic. Você
não teve culpa. Ela estava rindo com você. Morreu feliz.
As
palavras de Marcelo pioraram mais ainda a culpa de Victoria. Ela se virou e
abraçou forte Luciano que ficou ajoelhado ao lado dela sem falar mais nada. Ele
sabia os motivos de ela ter pedido perdão.
- É melhor você
levá-la para casa. Fico feliz que ela tenha você como namorado. Não a deixe
sozinha hoje, tudo bem?
Luciano
fez um sinal positivo para o noivo pegando Victoria e a levando embora dali.
Eles não viram, mas ao longe, um senhor de cabelos completamente brancos os
observava atentamente. Levantou assim que Luciano sumiu saindo pela porta.
Ao
chegar ao carro a primeira coisa que Luciano fez foi tirar aquele paletó quente
e afrouxar a gravata. A noite seria longa e ele queria estar confortável.
Durante todo o caminho, Victória não falou nada, apenas chorava
silenciosamente. Essa situação deixava Luciano totalmente desconfortável.
Queria ajudar mais Victoria, mas não sabia como.
Depois
de estacionar o carro, Victoria saiu e foi direto para o quarto. Da cozinha,
Luciano pode escutar barulhos de coisas se quebrando. Ele deixou que ela
tentasse se acalmar primeiro. Enquanto esperava preparou uma comida leve para
os dois. Passava da meia noite e eles não haviam comido nada. Ele ficou se
perguntando o que acontecera durante sua ausência. Meia hora depois ele subia
as escadas com uma bandeja com um prato de comida.
- Vic? Vic? Sou
eu! Você quer comer alguma coisa? Ainda não comeu nada. – Ele falou batendo na
porta. Esperou e não houve resposta. – Bem, a bandeja vai ficar aqui na sua
porta caso você sinta fome. Eu vou estar na sala.
Luciano
trocou de roupa, sempre levava uma muda de roupa na sua bolsa, colocou uma
camiseta azul clara e um short e foi tentar se arrumar no sofá da sala. Ele
lembra de sempre dormir lá quando criança, mas à medida que foi crescendo,
passou a não caber mais nele direito. Com seu 1,88 ficava difícil encontrar
posição confortável.
Ele
pegou um dos cadernos de Tereza e ficou lendo. Tentando entender o que estava
acontecendo. Boa parte das anotações dela eram sobre demônios. Procurou o nome
Malak sem sucesso, ele ainda estava tentando encontrar informações sobre o
demônio que eles enfrentaram na noite anterior. Ao invés disso, ao final do
caderno, encontrou informações gerais.
“Não se pode usar o mesmo conjunto de
palavras mais de uma vez no mesmo demônio. Fazendo isso, você demonstrará
fraqueza e alimentará mais o demônio. É necessário ter um vocabulário forte
para isso.
Não se pode também enfrentá-los em
locais públicos ou com muitas pessoas. As energias misturadas o tornam mais
forte, pois não devemos esquecer que eles se alimentam das emoções humanas,
principalmente as negativas. E em locais com muitas pessoas, várias emoções
estão misturadas.
E mais importante de tudo, não se deve,
de forma alguma, tentar enfrenta-los sem ao menos um terço por perto. O símbolo
da cruz os enfraquece somente com a sua presença. Estando desprotegida, você
será uma presa fácil. ”
Luciano
ia lendo e começava a entender o que havia acontecido. Victória havia tentado
enfrenta-lo sozinha, e no meio de várias pessoas. Não foi difícil também
entender que se tratava de Malak; mas como ele havia conseguido voltar num
curto espaço de tempo e bem mais forte eram as dúvidas que mais o estavam
intrigando.
Luciano
acordou com um barulho vindo da cozinha. Assustado pegou um vaso e foi com
cuidado para o local do barulho. Relaxou quando viu que era Victoria fazendo
café. Ela estava com os olhos vermelhos.
- Você não
pregou o olho, não foi? – Luciano perguntou colocando o vaso em cima da mesa.
Não houve resposta. – Vai, deixa eu fazer isso, senta ali que eu faço seu café.
Victoria
demorou um pouco, mas deixou Luciano assumir os preparativos do café. Ele notou
que a bandeja estava perto da pia intocada. Sem falar nada preparou ovos
mexidos e panquecas. Não era bem o café típico de Manaus, mas não havia nem
macaxeira nem tucumã.
- Eu não pude salvá-la! – Victória falou
baixo. Luciano permaneceu calado esperando. – Eu fui descuidada, deveria estar
com meu crucifixo, deveria ter levado ao menos água benta.
- Você não podia deduzir que isso
aconteceria, Vic.
- Eu sou uma caçadora, Luciano. TENHO
que estar preparada pra coisas assim. Fui descuidada, fui arrogante achando...
- Você foi pega
de surpresa, apenas. Agora venha, você não comeu nada ainda e definitivamente,
estar de estômago vazio não ajuda em nada. – Ele falou colocando a mesa. O
cheiro de café recém coado fez a barriga de Victoria avisar que estava vazia. –
Além do mais, você pode usar essa perda para aprender mais sobre o trabalho da
sua mãe, não acha? – Ele falou sorrindo para ela. Victoria notou que o sorriso
dele melhorava seu dia em cem por cento.
Eles
comeram em silêncio. Se Victoria tivesse vizinhos eles olhariam uma cena de um
casal começando a tomar café cedo em pleno domingo. Ela começou a lagrimar
novamente. Deixou a comida pela metade.
- Vic... –
Luciano falou se levantando e a abraçando. – Você tem que levantar a cabeça
e...
Eles
ouviram a campainha. Luciano foi ver quem era. Pela janela viu um senhor de
seus 60 anos parado no portão. Ele parecia estar usando um hábito, mas Luciano
pensou que talvez fosse coisa de sua cabeça. Ele abriu a porta.
- Bom dia.
- Oh, bom dia. Desculpe, aqui é a casa
da Tereza Melo?
- Costumava ser.
- Costumava?
- Ela morreu faz um ano, senhor...?
- Oh, que falta de Educação. André.
André Andrade. A seu serviço.
- Bem, se o senhor não se incomodar
eu...
- Ela perdeu uma alma ontem, não foi? –
O senhor perguntou sem cerimônia. – Essas coisas podem acontecer quando não se
tem o treinamento certo.
- Desculpa, quem é o senhor? – Luciano
perguntou preocupado.
- O mestre de Tereza. E agora de Victoria. O senhor vai ou não me deixar
entrar? Victoria não sabe ainda, mas a alma dela está correndo perigo.
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