segunda-feira, 28 de setembro de 2015

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Victoria escutou a confusão na porta da frente e foi ver o que estava acontecendo. Quando chegou por lá viu Luciano impedindo a passagem de um senhor de mais ou menos 60 anos que insistia em entrar na casa. Ela se postou atrás do amigo para entender melhor o que estava acontecendo.
Luciano estava olhando para André enquanto este tentava entrar na casa falando coisas sem sentido. Ele já havia passado por muitas coisas para saber que não se pode deixar qualquer estranho entrar em casa.
André, que era bem mais baixo que Luciano, tentava em vão empurrá-lo. Enfim, vencido parou, respirou fundo e ficou olhando para o casal. Ele viu uma grande energia positiva vindo dos dois, mas sabia que ela também era perigosa.

- Eu vou poder entrar, ou vamos começar a conversar aqui na porta mesmo? Acredito que os vizinhos estejam começando a acordar, levando em consideração o adiantado da hora. – Ele falou olhando para o relógio preto esportivo.
- Claro que pode...
- Não! Vic, a gente não sabe quem ele realmente é! E hoje é domingo, as pessoas acordam tarde no bairro. – Luciano falou impedindo que André entrasse na casa.
- Lu, deixa de besteira, que mal ele pode fazer? Além do mais, eu não quero mais encrenca para mim, lembra da dona Álvara aí da frente? Já apareceu duas vezes para ver o que estava acontecendo. Ela já não gosta muito de mim, deixa ele entrar.
- Mas e se ele tentar alguma coisa?
- Você vai tentar alguma coisa?
- Não. – André falou objetivo.
- Viu? Além do mais, se ele tentar alguma coisa, eu enfio uma estaca no coração dele. – Victória falou voltando à mesa.

André entrou e se sentou esperando qualquer reação de Victoria. Luciano voltou a se sentar ao lado dela, mas sempre de olho nele. André ficou analisando toda a situação. Quando ele decidira reaparecer sabia que seria difícil. Não esperava encontrar Victória assim tão abatida. Uma aura azul emanava dos dois, principalmente quando eles estavam juntos. Amor. O que poderia ser um ótimo ajudante, quando usado da maneira correta. Mas pelo que ele notara, nem Victória, nem Luciano tinham conhecimento de seus verdadeiros sentimentos. E o que ele teria que fazer para que ambos acreditassem nele, não seria nada agradável para ninguém.
André sabia que poderia usar esse sentimento para manter Victoria a salvo por mais tempo. Ele já vira o que o amor era capaz de fazer quando verdadeiro e dos benefícios disso, o problema era justamente esse. Victória, apesar da aura azul, havia um ponto preto perto de seu coração. Ela teria que se abrir ao amor novamente para poder aceitar os sentimentos de Luciano. André suspirou. Achava que fosse apenas treiná-la.

- Então, senhor...
- André, pode me chamar de André.
- André. O que o senhor quer tanto falar comigo?
- Você é muito parecida com a sua mãe, tanto fisicamente quanto na personalidade forte. E isso é bom.
- Como o senhor conhecia minha mãe? – Victoria se recostou na cadeira com um cigarro na mão.
- Eu fui o mestre dela. Você sabe que essa coisa mata?
- Assim como expulsar demônios. O senhor é padre?
- Aposentado, mas sim, sou... Fui padre exorcista. Malak não me é completamente desconhecido, mas quando nos enfrentamos, ele não era assim tão forte.
- O que o senhor sabe sobre ele? – Luciano perguntou desconfiado ficando perto dos instrumentos de Victória.
- Por favor, meu jovem, não é necessário isso. Eu vou lhes contar tudo, mas com paciência. Preciso me recuperar da viagem.
- O senhor estava onde?
- Venezuela. Cuidando de uns casos que ninguém conseguia entender. Parece que o outro está fazendo uma reforma lá em baixo e seus amigos estão vindo para nosso plano passar umas férias. Nunca vi tantos casos de possessões como estou vendo agora.
- O senhor tem alguma ideia de como parar isso?
- Ter eu tenho, mas, primeiro precisamos descobrir o motivo de isto estar acontecendo. Perdi muitas crianças sabe... Não quero mais perder ninguém.
- Entendo o senhor – Victoria falou baixo se levantando. Quando voltou, trouxe um copo de água, suco de laranja e pão para que André pudesse descansar direito. Ele comeu um pouco antes de começar a falar.
- Fui consagrado padre há trinta anos. Naquele tempo eu estava com visões românticas de que poderia mudar o mundo através das minhas pregações. Comecei em cidades pequenas do interior. É bem mais fácil tocar o coração das pessoas em cidades pequenas. Mas logo me mudaram para Manaus, não antes de um curso, com tudo pago na Itália no próprio Vaticano; foram seis meses de aulas intensas, visitas acolhedoras e muita massa – André falou soltando uma gargalhada – engordei dez quilos em seis meses, mas nunca havia comido macarrão e pão tão gostosos quanto os que comi por lá. Fiz amigos para a vida toda. Dentre essas aulas, estavam as de exorcismo. Para essas aulas poucas pessoas foram escolhidas e eu fui uma delas. Foi quando vi que tudo que nos ensinaram eram apenas contos de fadas. Os verdadeiros demônios estão entre nós, vivendo como humanos, com reações e sentimentos humanos, por isso é tão difícil encontra-los. Essas pessoas estão mais perto de nós do que qualquer possessão e eles são infinitamente mais perigosos, pois sabem exatamente como nos atingir para conseguir o que querem.
- Se eles se passam por humanos então eles podem...
- Ter filhos? Sim, podem sim, mas para acalmar o coração de vocês, essas crianças nascem puras apesar de tudo e com a educação certa, jamais irão sucumbir ao mau.
- Mas e quando elas não têm essa educação? – Luciano perguntou sem saber porque aquilo lhe incomodou tanto, mas continuou prestando atenção à história de André.
- Passados dois anos que estava em Manaus, sua mãe apareceu Victoria, assustada, sozinha, e achando que estava louca. Ela havia visto uma possessão de perto, mas não sabia o que era. Eu tive que primeiro acalma-la para depois escutar tudo que ela tinha para me contar sobre o que vira. Foi quando eu decidi que iria treiná-la. O vaticano, andava trabalhando nos bastidores com alguns padres para que eles começassem a treinar pessoas que mais se enquadrassem com a tarefa, os padres estavam morrendo e isso era um problema. Mandei uma carta para o vaticano avisando de sua mãe e logo chegou a autorização para treiná-la, desde que não chamasse atenção.
- Mas Deus, eles estavam trabalhando contra demônios, como eles não queriam que isso não chamasse atenção? – Victoria falou um pouco irritada.
- Foi o que eu contei para eles, perguntando se eu poderia seguir meus próprios métodos para ensinar Tereza. Eles me deram permissão e assim começamos uma parceria, eu e ela. Ela foi uma aluna produtiva, escutava tudo que eu contava, todos os pontos fracos dos demônios que enfrentávamos. Com o tempo, sua mãe se tornou uma demoniologista procurada e famosa. Alunos de outros padres vinham de todas as partes do mundo para conversar com ela sobre suas descobertas. Sua mãe ajudou muita gente. Então... – André parou de falar apreensivo olhando para os dois.
- Então... – Victoria e Luciano quiseram saber.
- Malak apareceu. Forte, mau, incontrolável. Sua mãe criou uma obsessão em relação a ele, estudou tudo que poderia sobre ele, quem ele era. Veja, a primeira coisa que precisamos saber sobre um demônio é...
- A sua história, de onde ele veio. Minha mãe me ensinou isso. Mas é estranho, eu procurei em todas as anotações da mamãe, mas eu encontrei pouquíssima coisa sobre ele.
- Sua mãe queimou quase tudo. Ela percebeu que ele era muito forte para deixar essas informações disponíveis em qualquer lugar correndo o risco dessas informações caírem em mãos erradas. A verdade Victória, é que a sua mãe teve medo dele. E ela nunca tinha medo de nada, mas Malak era diferente de tudo que estávamos enfrentando. Então eu levei sua mãe até o meu mentor.
- Minha mãe conheceu o Camerlengo? – Victória falou tossindo e cuspindo a água que estava tomando.
- Como você sabe que meu mestre no Vaticano foi o Camerlengo? – André perguntou assustado.
- Minha mãe contava história de vocês quando eu era criança, mas eu não fazia ideia que ela havia sido uma dessas pessoas. Nem sabia o que diabos significava essa palavra. – Victoria estava se enxugando, chegando mais perto da janela para fumar sem incomodar ninguém.
- Olha a boca, mocinha. Não fale o nome dele em vão. Isso pode trazer má sorte.
- Desculpe. – Victoria falou meio com desdém. O que ela mais tem dito ultimamente é essa palavra.
- Tereza sempre me surpreendendo. Mas sim, fomos até o Camerlengo. Ele conversou conosco e falou que talvez fosse hora de deixar que o próprio Vaticano cuidasse dele, mas estamos falando de Tereza, e você deve saber como as coisas funcionavam. Ela saiu de lá garantindo que iria derrotar Malak usando de objetividade. O próprio Vaticano não sabia nada dele, foi sua mãe que fez um grande esforço e uma pesquisa imensa para descobrir algo sobre ele.
- E depois queimar tudo? Isso não parece coisa de dona Tereza – Luciano falou desconfiado.
- Ela não queria que seus escritos caíssem nas mãos dos filhos das sombras.
- Filhos das sombras?
- É como chamamos os filhos dos demônios com as humanas. O Vaticano tem uma vasta lista catalogada de muitas pessoas nesta situação. Por isso existem os missionários, para fazer com que essas almas não sejam atraídas pelas trevas.
- Entendi. Mas ainda assim, ela poderia apenas ter guardado num cofre ou algo assim, né?
- Ela pensou que tivesse derrotado Malak. Mas parece que não foi esse o caso. Onde você o enfrentou pela primeira vez, Victória?
- Perto de uma igreja batista pequena, na Compensa. Era uma menina ainda, ficou bastante assustada quando terminou. Era uma rua mínima, eu e Luciano tivemos que ir a pé, pois o carro dele não passava. Era quase uma vila. Não sabia que haviam vilas assim aqui em Manaus.
- Existem e não são poucas. Compensa, você diz? Menina? Ele fugiu de sua característica básica. Ele é um demônio festeiro e definitivamente não entra em meninas. Geralmente ele se demonstrava em festas e... – André parou ao ver que a expressão de Victória e Luciano mudou. Victoria se levantou e levou a louça suja para a cozinha. – O que aconteceu? – Ele perguntou baixo à Luciano.
- Ontem foi assim que Malak apareceu. Em uma festa, entre muitas pessoas. Na tia de Victória.
- A mão do Marcelo morreu? – André parecia sinceramente surpreso.
- Sim, o enterro será em alguns dias. Victória sabia que era Malak. Ele falou isso para ela, e disse também...
- Que a alma dela era do outro.
- Mas como isso pode acontecer?
- No tempo eu conto tudo, será muita informação para a cabeça dela agora. – Ele parou e olhou diretamente nos olhos de Luciano. – Vou lhe fazer uma pergunta e quero que você seja mais sincero que pode ser, tudo bem?
- Tudo bem, mas o...
- Você a ama?
- S-sim! – Luciano falou tão baixo que André precisou se esforçar para ouvir.
- Então fique sempre ao lado dela, ela precisa de você, precisa do seu amor, e quando começarmos o treinamento, ela precisará mais que nunca.
- Mas... Por que?
- Porque a verdade vai doer nela... Vai doer para vocês dois.

Ao terminar de falar com Luciano, André notou que Victoria ficou olhando para o horizonte. Ela segurava uma estaca em sua mão e o cigarro na outra. André suspirou. Ele sabia que seria difícil romper esse lacre que a própria Victória criou.

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