A
semana começou tumultuada. Victoria e Luciano mal tiveram tempo de sequer
pensar em algo além de seus afazeres no colégio. No domingo à noite, quando
chegou em casa, Luciano ainda teve de ficar até tarde da noite elaborando
provas para as suas seis turmas do ensino médio.
Na
segunda ele estava completamente esgotado. Aproveitou e deixou que os alunos
consultassem o livro para poder evitar problemas com as fatídicas colas.
Victoria por sua vez, teve que rever todo seu orçamento e a contratação de um
novo professor de matemática. O antigo se afastou por motivos de doença.
Estava
terminando de falar ao telefone quando um homem de estatura mediana entrou em
sua sala munido de uma pasta e um currículo. Ela lembrou que havia marcado hora
com ele na semana passada para a cadeira de matemática, com tudo que aconteceu,
só lembrou quando o viu entrando pela porta. O dia seria longo. Acenou para que
ele sentasse enquanto terminava de falar com o fornecedor.
- Desculpe, início de mês é assim mesmo,
senhor...?
- Ah sim, meu nome é Paulo Najar. Nos
falamos ao telefone dias atrás.
- Sim, o candidato para professor de
Matemática. Me desculpe, as coisas hoje estão meio complicadas.
- Não se preocupe, eu entendo.
- Então, Paulo, estou vendo que seu
currículo é ótimo. Deu aula no colégio militar, então vejo que está acostumado
com disciplina.
- Sim, tive que sair por conflitos de
horários. Na época estava ocupado com assuntos pessoais e me afastei. Mas
gostava muito de ministrar aulas lá.
- Bom, como conversamos ao telefone,
creio que a vaga é sua. Você, é de longe, o melhor candidato que apareceu para
nós.
- Obrigado.
- Bom, então Pode começar amanhã?.
- Tão rápido assim?
- Sim estamos atrasados na matéria.
Precisamos começar o quanto antes para normalizar isso.
- Isso me motiva mais ainda para fazer o
meu melhor.
- Não esperamos
menos que isso. Vamos, vou lhe mostrar o colégio.
Victoria
ia mostrando todo o colégio para Paulo. Passou pela sala de Luciano e viu que
ele estava aplicando prova. Decidiu, então, apresentar Paulo outra hora.
Apresentou outros professores que ia encontrando pelo caminho e mostrou as
turmas que ele iria assumir. Ao final de visita, Victoria sentou-se em sua cadeira
para descansar. Ainda estava debilitada e não dormira bem noite passada.
Ao
final do dia, Victoria estava suando frio. Luciano, preocupado, a levou para
casa. Era tempo de ele voltar ao seu apartamento que há muito estava
abandonado. Ele precisava ser aberto um pouco e ver as contas, que não paravam
de chegar. Com a promessa que voltaria, ele deixou Victoria e foi resolver suas
coisas.
Victoria
comeu alguma coisa e estava se preparando para deitar quando André chegou. Ele
preparou seu prato enquanto conversavam sobre os eventos do final de semana.
Apesar de tudo ter sido um sucesso, André estava preocupado com essa fraqueza
de Victoria.
- Você não dormiu bem, não foi? – Ele
perguntou pegando no pulso dela para ver se estava tudo bem.
- E você consegue dormir bem depois de
saber que Malak está cada vez mais forte?
- Sim, isso é preocupante, mas de se
esperar. – Ele falou se afastando dela.
- De se esperar? – Victoria sentou-se na
cama com certa dificuldade. Ela ainda sentia-se muito mal.
- Você não leu as anotações de sua mãe,
não foi?
- Caso você não tenha notado, não tive
muito tempo, você não me fez largar essa bíblia.
- Vou falar mais sobre ele. – André
falou suspirando. – Vic, o Malak vai ficar naturalmente mais forte, por ele ser
o que chamamos de Gidin.
- Gidin? O que é isso?
- Gidin é uma espécie de demônio
mutante. Ele vai adquirindo mais poder à medida que se manifesta. Basicamente
ele é uma espécie de imã do mal.
- Que legal. Eu estou enfrentando um imã
demônio. – Victoria falou irritada o que tirou uma risada de André.
- Não se preocupe, você está se saindo
bem... – Ele parou como se tivesse medo de continuar o pensamento.
- O quê?
- Sei que você está preocupada com o que
ele falou a você. Quer conversar sobre isso?
- Comentar que sou um John Constantine
de saias? Não, acho que não.
- Quem é John Constantine? – André
perguntou confuso.
- Ai... Deus. Vem. – Nas próximas duas
horas Victoria e André assistiram ao filme com o Keanu Reeves. Victoria, que já
sabia decorado, acabou adormecendo, mas André assistiu até o fim.
- Que filme
fantástico. – Ele falou empolgado. Parou quando notou Victoria dormindo. –
Durma criança, durma. Você ainda terá muito desafio e precisa de forças.
Passava
pouco mais das três da manhã quando Victoria acordou gritando fazendo com que
André corresse até a sala. Ele já estava com uma arma nas mãos, mas abaixou
assim que viu o que estava acontecendo. Victoria estava encolhida no sofá
tremendo.
- Eu... Eu
sonhei que... Eu vi minha mãe no inferno, André, o que isso significa? – Ela
falou chorando sem parar.
Ele
guardou a arma atrás da porta da cozinha e caminhou calmamente até o sofá,
abraçando Victoria. Ela estava tremendo de medo. Ele não poderia mais esconder
a cruel verdade, então começou a falar da forma mais gentil possível.
- Houve uma tarefa que eu e sua mãe
fomos. Aparentemente era apenas mais um demônio que teríamos que combater, a
diferença foi que foi em um padre. Já imaginou? Um demônio em um padre?
Pensávamos que seria mais fácil, já que os padres têm conhecimento que a
maioria das pessoas não têm. Mas, estávamos errados. Quando há a possessão em
um padre, é sinal de que o demônio tem classe 9, o que fica mais próximo do
diabo.
- Há classes entre demônios? Achei que
fosse somente coisas de anjos.
- Esqueceu que o próprio Lúcifer era um
anjo? – Ele perguntou gentilmente. Victoria ia se acalmando à medida que sentia
o cafuné de André.
- Então, anjos e demônios têm classes?
Mais uma coisa para estudar depois, não é?
- Sim. Mas voltando. O padre em questão
estava concorrendo ao cargo de arcebispo, então, você imagina quão importante
ele era. Quando chegamos e começamos a tentar libertá-lo, logo vimos que aquele
caso seria complicado. Tentamos de tudo Vic, mas nada resolvia. Meu estoque de
água benta estava acabando e sua mãe não sabia mais de nada que pudesse usar
contra ele. Foi então que ele começou a falar. A princípio não demos ouvidos,
mas com o tempo sua mãe, acho que já cansada talvez, começou a discutir com
ele.
- Um erro em vários níveis. Ela sempre
me falava para nunca discutir com um demônio.
- Ela estava certa. A discussão tomou um
rumo estranho. Eu estava vendo que sua mãe estava ficando preocupada. Ele
estava tocando num assunto delicado da vida dela, então ela perdeu o controle.
- Que assunto?
- Você, Vic, que naquela época, não
passava de uma criança de três anos. E ele jogou sujo com ela.
- Como assim? – Victoria perguntou
olhando sério para ele.
- Ele disse que o verdadeiro desejo
deles era levar você para o inferno. Eles já sabiam que você seria uma cristadelfiana
poderosa e não podiam deixar que isso acontecesse. Então, depois de muita luta,
nós conseguimos libertar o padre, mas com algum sacrifício.
- Que sacrifício? A alma da mamãe? –
Victoria perguntou meio sonolenta. André não falou nada e ficou afagando os
cabelos dela. Victoria notou alguma coisa errada no comportamento de André e
acordou de vez. – Espera um minuto, você está falando que minha mãe condenou a
si própria para poder... Me salvar? – Victoria estava em pé tentando respirar
direito sem conseguir.
- Victoria, entenda, ela não teve...
Você era a vida dela. Ela não podia deixar que você fosse condenada por erros
dela.
- Erros? Erros? Quer dizer que eu sou um
erro? – Victoria estava gritando. Ela estava chorando, mas não sabia se era de
raiva ou outra coisa?
- Vic, escute...
- Não, não... Quem você pensa que você
é? Chegar aqui, falar um monte de mentiras e ficar por isso mesmo? Não, minha
mãe não... – Ela já não suportava mais, caiu de joelhos tossindo tentando
respirar. André correu para ajudá-la.
- Vic, calma, vamos respire devagar,
escute somente a minha voz. Você é capaz, calma. Isso, assim, vamos, respirando
devagar até sentir o ar enchendo seus pulmões. Assim. – Ele a segurava firme,
porém gentilmente até ver que Victoria estava respirando normalmente. Ele a
ajudou a se sentar no sofá. Ele estava acabando de cobrir Victoria quando
Luciano chegou.
- O que aconteceu aqui? – Ele perguntou
ainda cansado de subir as escadas correndo.
- Você... O que você está fazendo aqui?
– André falou o afastando de Victoria que voltara a respirar normalmente.
- Não sei. Senti algo coisa ruim no meu
coração e vim correndo com medo de que tivesse acontecido alguma coisa com ela.
- Sensitivos? Por que nunca você me
falou isso, Luciano? – André estava esfregando um óleo no braço de Victoria.
- Sempre tivemos isso. O que isso
significa? O que aconteceu com ela?
- Que vocês... Você acredita em almas
gêmeas? – Ele perguntou levantando e indo buscar um copo de água. – Tome filha,
beba essa água devagar.
- Depois que você me falou que vampiros
existem acredito em qualquer coisa. – Ele falou dando de ombros chegando
próximo de Victoria. – O que aconteceu?
- Eu contei a verdade sobre a mãe dela.
– André falou normalmente.
- Verdade sobre a dona Tereza? Que
verdade?
- Sim, de como Tereza vendeu a alma dela
para salvar Victoria.
- Dona Tereza fez o quê? – Luciano
levantou num pulo gritando.
- Fale baixo
droga, você quer que os vizinhos escutem? Venha, vamos conversar em outro
local. – André falou depois que viu que, enfim, Victoria voltou a dormir.
Os
dois foram conversar no escritório. André repetiu lentamente toda a história
que contou para Victória, sem esconder qualquer detalhe. Luciano ficou calado
toda a narrativa. André estranhou o comportamento do rapaz a sua frente, mas
contou a história até o fim.
- Então?
- Você é um velho filho da puta.
Desgraçado, como é que você conta uma história dessas para Victoria como se
discutisse o tempo em Porto Alegre? – Luciano estava gritando de raiva com ele.
- Luciano, não vou conversar com você
exaltado dessa forma.
- Como assim? Para ela você fala que a
mãe dela está no inferno como quem canta uma música infantil e para mim você
diz que não vai conversar?
- Não existe jeito fácil para falar
essas coisas, garoto. Entenda e use seu parco bom senso. – André começou a
discutir com ele também. – Eu jamais faria qualquer coisa para prejudicar a
Victória, merda. Você não entende? Quanto mais no escuro ela ficar, mais armas
Malak terá.
- Porra, mas
precisava contar da forma natural como você contou?
Os
gritos dos dois eram tão altos que acordou Victoria. Ela se levantou e foi até
o escritório saber o que estava acontecendo. Quando abriu a porta, viu que
Luciano e André, além de serem quase da mesma altura estavam prestes a se
atracar. Ela correu a ponto de evitar o pior.
- Mas que merda está acontecendo aqui? –
Victoria se meteu entre os dois tentando separá-los.
- Esse velho escroto. – Luciano falou se
afastando, enfim.
- André? O que aconteceu?
- Eu contei para ele sobre sua mãe e...
- Você não tinha esse direito. –
Victoria falou apontando o dedo na cara de André. – Isso era coisa minha, não
era para ninguém ficar sabendo.
- Quer me deixar no escuro você também
Victoria? – Luciano perguntou se irritando com ela também.
- Porra
Luciano, não é isso... Mas é que... A minha mãe está no inferno por minha
culpa... – Victoria enfim começara a chorar. Um choro que estava entalado em
sua garganta há dias.
Luciano
esquecendo a raiva de André em poucos segundos abraçou forte Victoria. Ela
chorava soluçando encolhida nos braços dele. André os deixou sozinhos. Ele
sabia que sua presença, naquele momento, era dispensável. Aproveitou e foi
pesquisar mais sobre almas gêmeas. Talvez, com alguma sorte, ele poderia salvar
a todos de um destino terrível. Enquanto ia ao seu quarto procurar suas
anotações, André sentiu uma pontada na boca do estômago. Era hora de tomar mais
uma dose de seu remédio.
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