domingo, 22 de abril de 2018

17

Durante o caminho para o apartamento de Victoria, Luciano foi pensando em como conversaria com André sobre o relacionamento. Era complicado falar sobre esses assuntos com uma pessoa que sempre o manteve distante, mesmo com o passar dos meses. E também porque a relação de André e Victoria era complicada ao extremo.
Ao chegar, André já o estava esperando. Sua aparência estava horrível, o que fez com que toda a coragem de Luciano acabasse. Victoria já havia falado para ele o que havia acontecido e André ficou preocupado. Luciano se culpou por estar levando tais problemas para ele, mas a curiosidade dele era muito maior.
André desconfiava que havia algo novo assim que botou os olhos em Luciano. Ele estava escondendo alguma coisa. Talvez fosse pelo fato de descobrir que o pai dele fosse um ser da mesma natureza que vinha caçando, talvez por ter medo de ser como o pai, ou talvez alguma outra coisa.

- Venha, temos muito o que fazer.
- André eu preciso...
- Você, assim como 90% da população, tem uma ideia errada do que é um filho das sombras.
- E o que é ser o que eu sou? Porque, te confesso que se for para eu sair machucando as pessoas... – André olhou para ele sem falar nada esperando que ele se calasse. Luciano estava falando mais rápido que o normal demonstrando todo nervosismo. André deu as costas para Luciano e entrou. Ele suspirou e o seguiu. Na sala, Luciano se deparou com vários livros abertos, no que ele reconheceu ser a guerra celestial. Logo ficou cético quanto a tudo isso. O que histórias em quadrinhos e contos de fadas iriam ajudá-lo a descobrir o que ele era?
- Por que não a bíblia?
- Ela não irá nos ajudar agora.
- Por que?
- Precisamos livros objetivos para isso. A bíblia, ajuda, mas não é objetiva. – André falou suspirando e se jogando no sofá. Luciano sentou-se ao seu lado. Pegou o primeiro livro e leu o título. Era um livro dessas para adolescentes.
- Anjos Caídos? André não creio que esses contos de fadas...
- Cale a boca e leia. – André falou seco. Luciano suspirou e começou a ler as primeiras linhas se perdendo logo em seguida na leitura.

Ele não demorava muito nos mesmos livros, obviamente, mas em todos eles, os capítulos descrevendo o que eram anjos caídos eram os que ele mais demorava. André havia escolhido bem, já que não eram livros com as mesmas visões apocalípticas que Luciano conhecia. O que eles contavam, basicamente, eram que anjos que durante a guerra, não tomaram partido por nenhum dos lados, escolheram viver na terra como mortais. Uns como homens outros como mulheres; usando o mais sagrado dos dons: o livre arbítrio.

- Anjos também possuem livre arbítrio?
- Claro que eles possuem. Você acha que o maior dom que Deus já concedeu, não seria concedido a eles? E há mortais dos dois lados. Vou logo avisando.
- Oi?
- Continue lendo! – Falou André caindo no sono. Os remédios que ele estava tomando eram fortes e, percebendo isso, resolveu lê-los em silêncio.

André acordou depois de umas duas horas e quando acordou, Luciano estava relendo o diário da mãe. Por um tempo André ficou observando a expressão de Luciano. Ele ficou querendo abraça-lo. Não era nada fácil estar no lugar dele.

- Sua mãe tinha medo de seu pai ser um anjo reverso. – André falou com cuidado.
- Anjo reverso? – Luciano falou como se saísse de um transe.
- Nome que damos para os que vêm lá de baixo. Há uma lista deles na sede dos Cristadelfianos no Vaticano. Estão listados por países. Há listas dos anjos caídos também.
- Lista para os caídos? Mas por que? Eles não são os mocinhos da história?
- Porque eles são seres de luz, Luciano. Eles são nossos vigilantes e guardiões, sabem conceituar nossas emoções, mas seu conhecimento para por aí. Não sabem o que é sentir tudo que sentimos. Sentimentos como raiva, alegria, angústia... Amor são apenas conceitos para eles. Já houve relatos de caídos em crise de raiva matarem alguém, o que torna tudo muito pior, pois, sendo eles caídos, têm uma moral ética muito grande. – André contava tudo com muito cuidado para um assustado Luciano, que não desgrudava o olho do diário da mãe.
- Meu pai, ele era caído ou reverso? E se for reverso isso não é uma boa coisa? Quero dizer, ele desistiu de seguir as ordens de...
- Não fale esse nome! – André o interrompeu carinhosamente.
- Por que?
- Falar o nome dele aciona um imã, Luciano. Ele saberia onde você está em cada segundo da sua vida. Saberia o que você faz, o que come, com quem anda, tudo.
- Ele não sabe?
- Não existe link ao vivo do inferno para nosso plano. Ele só vê quem chama por ele. E eu pretendo deixar você e Victoria no escuro por um bom tempo. – André falou baixo.
- Um relógio analógico como você entendendo de “link ao vivo”?
- Posso ser um relógio analógico, mas vivo num mundo digital. E para isso preciso entender como ele funciona.
- Bem observado. Mas então, meu pai ele era um anjo. – Luciano não estava perguntando.
- Sim, era. E pelo que andei pesquisando, era um dos mais antigos.
- Mais antigos? Como assim? Existe idade para anjo?
- Sim e não. Quando afirmei que ele era um dos mais antigos quero dizer que ele foi um dos primeiros a não tomar partido na guerra. Luciano, alguns anjos gostavam dos humanos, mas não ao ponto de entrar numa guerra por eles. Se você me perguntar, lhe digo que quem escolheu viver aqui tomou a decisão mais certa.
- Guerra Celestial... Isso quer dizer que Miguel e Gabriel e todos os “el” do céu existem? – Luciano perguntou de repente como se acabasse de descobrir que Tony Stark estava sobrevoando os céus de Manaus nesse momento.
- Sim! – André falou em meio a uma crise de risos. – Eles “existem” sim. Apesar de ser um pouco mais complicado que isso.
- Meu pai conheceu os dois? – Luciano estava cada vez mais assustado.
- CONHECER é um verbo forte, mas sim, ele os conhecia. – André observou Luciano por um tempo. Ele estava com uma expressão de incredulidade no rosto.
- Certo. – Luciano falou respirando fundo. – Meu pai era um anjo. De que lado?
- O que você tem que entender, Luciano, é que não há lado quando eles se tornam humanos. Seu pai esteve sim um tempo no inferno, mas não tempo o suficiente para ele se tornar mau. Para lhe ser bem sincero, ele era a pessoa mais humana que eu já conheci.
- Então, por que Malak falou aquilo tudo para a Vic?
- Malak é poderoso, mas lhe falta interpretação de texto. Ele não sabe nada disso que estamos conversando. Não sabe que quando caídos e reversos se tornam humanos, eles se tornam humanos, apesar de terem uma longevidade bem mais significativa que nós. E também, para desestabilizar você e a minha... Victoria.

A realidade voltou à mente de Luciano rapidamente. Ele lembrou da noite anterior e que precisava contar toda a verdade para André. Ele só não sabia como.

- Então... Eu não... A minha alma...
- Ah não se engane, pode sim.
- Mas...
- A alma de qualquer ser humano pode ser possuída, Luciano.
- Mas então... Isso não vale de nada?
- Nós estamos aqui para fortalecer a sua alma e a vulnerabilidade chamada Victoria. Você não pode perder o controle quando Malak a atacar, até porque, quando eu me for, ela só terá você.
- André eu...
- Vamos, temos que continuar seu treino.

Luciano passou boa parte do dia no treinamento. Algumas coisas ele iria aperfeiçoando com o tempo, mas a maioria eram palavras e cânticos novos. Essas coisas, Luciano sabia que eram departamento da Victoria, mas agora, ele até estava pegando o gosto pela coisa. Além de se proteger poderia agir mais ativamente ao lado de Victoria.
Com o passar do tempo, Luciano foi ficando cansado e rouco. Ficou falando o dia todo. Precisava de uma pausa. E mesmo na pausa, André continuou contando a história que sabia para ele.

- Como já falei, pelo fato de eles terem apenas conceitos das emoções humanas, tudo neles é maior. Tudo neles é mais intenso. Quando eles escolheram a mortalidade, longa, mas ainda assim mortalidade, eles se tornaram especiais. Não possuíam mais o tom angelical, mas ainda tinham a capacidade de retórica. Grandes pensadores de todos os tempos eram anjos, sejam caídos ou reversos.
- Sério? Então, você está me falando que alguns nomes famosos da história mundial eram anjos?
- Sim. Mas a maioria era apenas pessoas tentando se encaixar. Alguns ainda possuíam algum poder, mas nada tão extraordinário. Os reversos, por exemplo, eram mais propensos a sentirem raiva extrema. Alguns canalizaram isso em profissões de perigo, como policiais, agentes secretos, essas coisas. Os caídos tudo neles é mais intenso. Tudo é sempre mais, inclusive o amor.
- Amor?
- Se nós nos apaixonamos, por que não eles? Mas o amor que eles sentem, sejam reversos ou caídos, é o mais forte e puro sentimento. Algo que impregna na pele e na alma ao ponto de nunca mais sair. Quando eles amam é para a vida toda e até mesmo morrem por esse amor.
- Mas você me falou que eles não morrem facilmente.
- Morrem por amor. Como falei, impregna na alma. É como se fosse uma droga ou algo do tipo. Eles ficam dependentes disso. Não dependentes de forma ruim; nada disso, mas dependentes da sensação de leveza que o amor dá. Ao ponto de se não sentirem mais isso, definham rapidamente e simplesmente param de respirar.
- Então, seria uma forma de suicídio?
- É um jeito de ver as coisas, sim. Seu pai foi um exemplo disso. Ele amou tão profundamente sua mãe, um amor tão puro, tão forte que quando ele se viu sem ela... O coração dele não aguentou. Ele teve um colapso generalizado e simplesmente...
- Morreu! – Luciano falou baixo.
- Bem... É! – André estava sendo mais cuidadoso possível.
- Isso é hereditário?
- Não há confirmações absolutas, mas sim, é sim! – André falou olhando diretamente nos olhos de Luciano. Ele soube que o segredo que ele estava tentando contar o dia todo logo viria à tona. E André sabia que não iria gostar nada do que iria descobrir. – Você já sentiu uma raiva imensa que não soube controlar, não foi? – Luciano ficou calado lembrando os ataques de raiva que ele já teve. Nunca entendeu o motivo deles acontecerem, e agora tudo se encaixava.
- Amor também? – Luciano estava tentando entrar no assunto de maneira não tão óbvia.
- Amor principalmente, Luciano. Eles não têm controle do quanto podem amar, então, amam profunda e apaixonadamente. Muitas vezes, podem morrer de coração partido, literalmente.

Luciano suspirou. Agora entendia muita coisa sobre ele, e sobre a imensa tristeza da mãe. Ela não sabia o que ele sabia, obviamente, mas estava tudo ligado ao pai dele. Um anjo reverso. A mãe se afastou dele por amor ao filho e por isso condenou o relacionamento. Mas ele era metade humano, entendia das emoções humanas melhor que ninguém, e poderia usar isso ao seu favor. Poderia não se deixar dominar pela raiva de uma vez só, ou então canaliza-la para somente usa-la na hora certa.
Já o amor... Era forte o suficiente para fazer com que ele cometesse uma loucura, ele teria que controlar isso também, principalmente agora, que sabe que Victoria sempre a mesma coisa por ele. O problema será contar isso para André, mas ele teria que fazê-lo. Luciano se levantou e foi para a janela. Queria dar tempo para que Victoria chegasse, mas deve ter ficado presa com alguma coisa burocrática. Já eram oito da noite e logo André adormeceria. Se passasse dessa noite, provavelmente não teria mais a coragem para contar tudo.

- Eu acho que estou entendendo o que você quer dizer. Preciso aprender a controlar a raiva, não é isso? Usar isso a meu favor.
- Exatamente. – André já estava ficando mais sonolento que antes.
- André, eu...
- Vai me contar o que estava me escondendo o dia todo?
- Talvez.
- E eu não vou gostar. – Ele não estava perguntando.
- Provavelmente não. Eu estava esperando a Vic chegar, mas acho que terei que fazer isso sem ela.
- E por que ela é importante? Você não sabe fazer nada sem ela?
- Claro que sei, mas é que tem a ver com ela também...
- Conta logo Lu...
- Nós estamos juntos. Passamos a noite juntos ontem. – Luciano falou rápido para não perder a coragem.

André demorou a raciocinar devido aos remédios, mas quando o fez, explodiu.

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