Durante
o caminho para o apartamento de Victoria, Luciano foi pensando em como
conversaria com André sobre o relacionamento. Era complicado falar sobre esses
assuntos com uma pessoa que sempre o manteve distante, mesmo com o passar dos
meses. E também porque a relação de André e Victoria era complicada ao extremo.
Ao
chegar, André já o estava esperando. Sua aparência estava horrível, o que fez
com que toda a coragem de Luciano acabasse. Victoria já havia falado para ele o
que havia acontecido e André ficou preocupado. Luciano se culpou por estar
levando tais problemas para ele, mas a curiosidade dele era muito maior.
André
desconfiava que havia algo novo assim que botou os olhos em Luciano. Ele estava
escondendo alguma coisa. Talvez fosse pelo fato de descobrir que o pai dele
fosse um ser da mesma natureza que vinha caçando, talvez por ter medo de ser
como o pai, ou talvez alguma outra coisa.
- Venha, temos muito o que fazer.
- André eu preciso...
- Você, assim como 90% da população, tem
uma ideia errada do que é um filho das sombras.
- E o que é ser
o que eu sou? Porque, te confesso que se for para eu sair machucando as
pessoas... – André olhou para ele sem falar nada esperando que ele se calasse.
Luciano estava falando mais rápido que o normal demonstrando todo nervosismo.
André deu as costas para Luciano e entrou. Ele suspirou e o seguiu. Na
sala, Luciano se deparou com vários livros abertos, no que ele reconheceu ser a
guerra celestial. Logo ficou cético quanto a tudo isso. O que histórias em
quadrinhos e contos de fadas iriam ajudá-lo a descobrir o que ele era?
- Por que não a bíblia?
- Ela não irá nos ajudar agora.
- Por que?
- Precisamos
livros objetivos para isso. A bíblia, ajuda, mas não é objetiva. – André falou
suspirando e se jogando no sofá. Luciano
sentou-se ao seu lado. Pegou o primeiro livro e leu o título. Era um livro
dessas para adolescentes.
- Anjos Caídos? André não creio que
esses contos de fadas...
- Cale a boca e
leia. – André falou seco. Luciano suspirou e começou a ler as primeiras linhas
se perdendo logo em seguida na leitura.
Ele
não demorava muito nos mesmos livros, obviamente, mas em todos eles, os
capítulos descrevendo o que eram anjos caídos eram os que ele mais demorava.
André havia escolhido bem, já que não eram livros com as mesmas visões
apocalípticas que Luciano conhecia. O que eles contavam, basicamente, eram que anjos
que durante a guerra, não tomaram partido por nenhum dos lados, escolheram
viver na terra como mortais. Uns como homens outros como mulheres; usando o
mais sagrado dos dons: o livre arbítrio.
- Anjos também possuem livre arbítrio?
- Claro que eles possuem. Você acha que
o maior dom que Deus já concedeu, não seria concedido a eles? E há mortais dos
dois lados. Vou logo avisando.
- Oi?
- Continue
lendo! – Falou André caindo no sono. Os remédios que ele estava tomando eram
fortes e, percebendo isso, resolveu lê-los em silêncio.
André
acordou depois de umas duas horas e quando acordou, Luciano estava relendo o
diário da mãe. Por um tempo André ficou observando a expressão de Luciano. Ele
ficou querendo abraça-lo. Não era nada fácil estar no lugar dele.
- Sua mãe tinha medo de seu pai ser um
anjo reverso. – André falou com cuidado.
- Anjo reverso? – Luciano falou como se
saísse de um transe.
- Nome que damos para os que vêm lá de
baixo. Há uma lista deles na sede dos Cristadelfianos no Vaticano. Estão
listados por países. Há listas dos anjos caídos também.
- Lista para os caídos? Mas por que?
Eles não são os mocinhos da história?
- Porque eles são seres de luz, Luciano.
Eles são nossos vigilantes e guardiões, sabem conceituar nossas emoções, mas
seu conhecimento para por aí. Não sabem o que é sentir tudo que sentimos.
Sentimentos como raiva, alegria, angústia... Amor são apenas conceitos para
eles. Já houve relatos de caídos em crise de raiva matarem alguém, o que torna
tudo muito pior, pois, sendo eles caídos, têm uma moral ética muito grande. –
André contava tudo com muito cuidado para um assustado Luciano, que não
desgrudava o olho do diário da mãe.
- Meu pai, ele era caído ou reverso? E
se for reverso isso não é uma boa coisa? Quero dizer, ele desistiu de seguir as
ordens de...
- Não fale esse nome! – André o interrompeu
carinhosamente.
- Por que?
- Falar o nome dele aciona um imã,
Luciano. Ele saberia onde você está em cada segundo da sua vida. Saberia o que
você faz, o que come, com quem anda, tudo.
- Ele não sabe?
- Não existe link ao vivo do inferno
para nosso plano. Ele só vê quem chama por ele. E eu pretendo deixar você e
Victoria no escuro por um bom tempo. – André falou baixo.
- Um relógio analógico como você
entendendo de “link ao vivo”?
- Posso ser um relógio analógico, mas
vivo num mundo digital. E para isso preciso entender como ele funciona.
- Bem observado. Mas então, meu pai ele
era um anjo. – Luciano não estava perguntando.
- Sim, era. E pelo que andei
pesquisando, era um dos mais antigos.
- Mais antigos? Como assim? Existe idade
para anjo?
- Sim e não. Quando afirmei que ele era
um dos mais antigos quero dizer que ele foi um dos primeiros a não tomar
partido na guerra. Luciano, alguns anjos gostavam dos humanos, mas não ao ponto
de entrar numa guerra por eles. Se você me perguntar, lhe digo que quem
escolheu viver aqui tomou a decisão mais certa.
- Guerra Celestial... Isso quer dizer
que Miguel e Gabriel e todos os “el” do céu existem? – Luciano perguntou de
repente como se acabasse de descobrir que Tony Stark estava sobrevoando os céus
de Manaus nesse momento.
- Sim! – André falou em meio a uma crise
de risos. – Eles “existem” sim. Apesar de ser um pouco mais complicado que
isso.
- Meu pai conheceu os dois? – Luciano
estava cada vez mais assustado.
- CONHECER é um verbo forte, mas sim,
ele os conhecia. – André observou Luciano por um tempo. Ele estava com uma
expressão de incredulidade no rosto.
- Certo. – Luciano falou respirando
fundo. – Meu pai era um anjo. De que lado?
- O que você tem que entender, Luciano,
é que não há lado quando eles se tornam humanos. Seu pai esteve sim um tempo no
inferno, mas não tempo o suficiente para ele se tornar mau. Para lhe ser bem
sincero, ele era a pessoa mais humana que eu já conheci.
- Então, por que Malak falou aquilo tudo
para a Vic?
- Malak é
poderoso, mas lhe falta interpretação de texto. Ele não sabe nada disso que
estamos conversando. Não sabe que quando caídos e reversos se tornam humanos,
eles se tornam humanos, apesar de terem uma longevidade bem mais significativa
que nós. E também, para desestabilizar você e a minha... Victoria.
A
realidade voltou à mente de Luciano rapidamente. Ele lembrou da noite anterior
e que precisava contar toda a verdade para André. Ele só não sabia como.
- Então... Eu não... A minha alma...
- Ah não se engane, pode sim.
- Mas...
- A alma de qualquer ser humano pode ser
possuída, Luciano.
- Mas então... Isso não vale de nada?
- Nós estamos aqui para fortalecer a sua
alma e a vulnerabilidade chamada Victoria. Você não pode perder o controle
quando Malak a atacar, até porque, quando eu me for, ela só terá você.
- André eu...
- Vamos, temos
que continuar seu treino.
Luciano
passou boa parte do dia no treinamento. Algumas coisas ele iria aperfeiçoando
com o tempo, mas a maioria eram palavras e cânticos novos. Essas coisas,
Luciano sabia que eram departamento da Victoria, mas agora, ele até estava
pegando o gosto pela coisa. Além de se proteger poderia agir mais ativamente ao
lado de Victoria.
Com
o passar do tempo, Luciano foi ficando cansado e rouco. Ficou falando o dia
todo. Precisava de uma pausa. E mesmo na pausa, André continuou contando a
história que sabia para ele.
- Como já
falei, pelo fato de eles terem apenas conceitos das emoções humanas, tudo neles
é maior. Tudo neles é mais intenso. Quando eles escolheram a mortalidade, longa,
mas ainda assim mortalidade, eles se tornaram especiais. Não possuíam mais o
tom angelical, mas ainda tinham a capacidade de retórica. Grandes pensadores de
todos os tempos eram anjos, sejam caídos ou reversos.
- Sério? Então, você está me falando que
alguns nomes famosos da história mundial eram anjos?
- Sim. Mas a maioria era apenas pessoas
tentando se encaixar. Alguns ainda possuíam algum poder, mas nada tão
extraordinário. Os reversos, por exemplo, eram mais propensos a sentirem raiva
extrema. Alguns canalizaram isso em profissões de perigo, como policiais,
agentes secretos, essas coisas. Os caídos tudo neles é mais intenso. Tudo é
sempre mais, inclusive o amor.
- Amor?
- Se nós nos apaixonamos, por que não
eles? Mas o amor que eles sentem, sejam reversos ou caídos, é o mais forte e
puro sentimento. Algo que impregna na pele e na alma ao ponto de nunca mais
sair. Quando eles amam é para a vida toda e até mesmo morrem por esse amor.
- Mas você me falou que eles não morrem
facilmente.
- Morrem por amor. Como falei, impregna
na alma. É como se fosse uma droga ou algo do tipo. Eles ficam dependentes
disso. Não dependentes de forma ruim; nada disso, mas dependentes da sensação
de leveza que o amor dá. Ao ponto de se não sentirem mais isso, definham rapidamente
e simplesmente param de respirar.
- Então, seria uma forma de suicídio?
- É um jeito de ver as coisas, sim. Seu
pai foi um exemplo disso. Ele amou tão profundamente sua mãe, um amor tão puro,
tão forte que quando ele se viu sem ela... O coração dele não aguentou. Ele
teve um colapso generalizado e simplesmente...
- Morreu! – Luciano falou baixo.
- Bem... É! – André estava sendo mais
cuidadoso possível.
- Isso é hereditário?
- Não há confirmações absolutas, mas
sim, é sim! – André falou olhando diretamente nos olhos de Luciano. Ele soube
que o segredo que ele estava tentando contar o dia todo logo viria à tona. E
André sabia que não iria gostar nada do que iria descobrir. – Você já sentiu
uma raiva imensa que não soube controlar, não foi? – Luciano ficou calado
lembrando os ataques de raiva que ele já teve. Nunca entendeu o motivo deles
acontecerem, e agora tudo se encaixava.
- Amor também? – Luciano estava tentando
entrar no assunto de maneira não tão óbvia.
- Amor
principalmente, Luciano. Eles não têm controle do quanto podem amar, então,
amam profunda e apaixonadamente. Muitas vezes, podem morrer de coração partido,
literalmente.
Luciano
suspirou. Agora entendia muita coisa sobre ele, e sobre a imensa tristeza da
mãe. Ela não sabia o que ele sabia, obviamente, mas estava tudo ligado ao pai
dele. Um anjo reverso. A mãe se afastou dele por amor ao filho e por isso
condenou o relacionamento. Mas ele era metade humano, entendia das emoções
humanas melhor que ninguém, e poderia usar isso ao seu favor. Poderia não se
deixar dominar pela raiva de uma vez só, ou então canaliza-la para somente
usa-la na hora certa.
Já
o amor... Era forte o suficiente para fazer com que ele cometesse uma loucura,
ele teria que controlar isso também, principalmente agora, que sabe que
Victoria sempre a mesma coisa por ele. O problema será contar isso para André,
mas ele teria que fazê-lo. Luciano se levantou e foi para a janela. Queria dar
tempo para que Victoria chegasse, mas deve ter ficado presa com alguma coisa
burocrática. Já eram oito da noite e logo André adormeceria. Se passasse dessa
noite, provavelmente não teria mais a coragem para contar tudo.
- Eu acho que estou entendendo o que
você quer dizer. Preciso aprender a controlar a raiva, não é isso? Usar isso a
meu favor.
- Exatamente. – André já estava ficando
mais sonolento que antes.
- André, eu...
- Vai me contar o que estava me
escondendo o dia todo?
- Talvez.
- E eu não vou gostar. – Ele não estava
perguntando.
- Provavelmente não. Eu estava esperando
a Vic chegar, mas acho que terei que fazer isso sem ela.
- E por que ela é importante? Você não
sabe fazer nada sem ela?
- Claro que sei, mas é que tem a ver com
ela também...
- Conta logo Lu...
- Nós estamos
juntos. Passamos a noite juntos ontem. – Luciano falou rápido para não perder a
coragem.
André
demorou a raciocinar devido aos remédios, mas quando o fez, explodiu.
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